Com uma filmografia invejável para apenas
13 anos de uma carreira meteórica e fecunda (nada mais que 43 filmes, incluindo
curtas, séries e filmes para TV’s germânicas, além de alguns trabalhos
radiofônicos), a obra do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, que morreu precocemente
aos 37 anos de idade (de overdose ou suicídio, há controvérsias...),
impressiona – isto, sem falar de seu trabalho como ator e dramaturgo, cujas peças
migravam diretamente à telona, com adaptações intertextuais significantes para
a linguagem do cinema, as quais este artigo abordará uma delas.
As Lágrimas
Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant), versa sobre a
hierarquia de afetos observados em sociedade; no filme este aspecto está
representado pela estilista Petra
(Margit Carstensen). Nesse universo temos: a jovem Karin (Hanna Schygulla) à
procura ‘de seu lugar ao sol’, por quem Petra
demonstra interesse, porém a moça a desdenha, e Marlene (Irm Hermann) – a secretária da estilista, que
nutre um amor não correspondido pela sua patroa, ela é notoriamente desprezada
e espinhada pelo objeto de sua adoração, ficando subentendido essa repulsa pelo
motivo de Marlene ser da classe
proletária e não possuir valores que possam ser ‘trocados’ pelo ‘afeto’ de Petra.
O filme foi concluído em 1972 juntamente
com mais dois longas do diretor (A
Encruzilhada das Bestas e Uma Mulher
de Negócios – cujas temáticas e abordagens são totalmente diferentes entre
si. Aliás, essa é uma das marcas registradas desse artista do Novo Cinema
Alemão: o experimentalismo e diversidade de estilos). Embora digam que As Lágrimas Amargas é um sugestivo
recorte autobiográfico de seu autor, onde se invertem os gêneros, mudam-se
nomes e as circunstancias, com uma pitada aqui e ali de subjetividade fictícia.
Contavam as más línguas dos críticos de plantão, que a relação de poder
observada nas ligações interpessoais do filme inspirava-se diretamente na
suposta relação vivida por Fassbinder e um jovem de
nome Günther, (seu amante do momento), o próprio
diretor, em entrevistas, dizia ser ele a Petra
do seu filme. Assumidamente homossexual, Fassbinder evoca sua visão e
experiência de mundo como temática para seus trabalhos. Demonstrados por vias tortuosamente líricas e avassaladoramente
profundas. Observamos a solidão; o medo; o desespero; pessoas “deslocadas” no
mundo; o desamparo; a desumanidade; preconceitos; hipocrisias, etc., em sua
obra. Para muitos críticos, As Lágrimas Amargas,
dentre as demais obras do autor, é o que mais se aproxima de um “cinema gay”, pois
o tema e a protagonista diretamente o são,
Em Petra von Kant, a personagem principal é uma
mulher, rica e aristocrata que, mesmo que não saia nunca de seu quarto, mantém
relações com Madrid, Miami e Paris. Desta forma, uma das principais
características da poética fassbinderiana mostra-se evidente desde o início: a
alternância entre os subúrbios de classe baixa com o meio exclusivo da classe
alta, assim como o revezamento dos arquétipos masculino e feminino – segundo Robert Katz, biógrafo de Fassbinder, o
filme trata-se da relação entre o cineasta alemão e Günther Kaufmann transformado em um caso de amor
lésbico, sendo assim, uma de suas obras mais autobiográficas. [MILAN, 2014].
Com diálogos repletos de amarguras e de
existencialismo, As Lágrimas Amargas evoca algo semelhante recorrente nas obras do
inglês Willian Shakespeare: a condição humana. Observamos também um toque
marxista permeando as relações entre as personagens principais: Petra, Marlene e
a jovem Karin por quem a estilista se apaixona. Sem ter muito sucesso com a
jovem, ela reage negativamente ao constar sua incapacidade de amar sem
interesse, e como consequência a protagonista entrega-se a um eterno lamento e
amargura pelo mundo, emergindo um choque consensual entre seus recém-criados valores internos e a
ditadura competitiva que o mundo moderno impõe às pessoas. Desse modo, Fassbinder
coloca que essa barganha entre amor e poder dificilmente trará felicidade aos
participantes, assim o diretor critica o modelo capitalista em que a sociedade
ocidental está submetida cegamente, onde a banalização das emoções impede de as
pessoas serem ‘naturais’, e como consequência direta disto, as virtudes são
vistas como um empecilho ao sucesso de acordo com os moldes que esta sociedade
de consumo impõe. Como recurso cênico, o diretor alemão mostra-nos esse sedutor
jogo de interesses através das vestimentas, das poses e olhares vazios das
personagens ao dialogarem entre si. Faz parecer uma dança coreografada
executada friamente entre Petra e Karin, através da lente de uma câmera
distante e igualmente analítica dos planos. Observamos o talento individual conflituoso
entre as três personagens principais mostrado no filme de Fassbinder como um
exemplo contrario daquilo que Thomas Hobbes referendou em seu Leviatã:
Por
virtudes intelectuais sempre se entendem aquelas capacidades do espírito que os
homens elogiam, valorizam e desejariam possuir em si mesmos; e vulgarmente
recebem o nome de talento natural, embora a mesma palavra talento também seja
usada para distinguir das outras uma certa capacidade. Estas virtudes são de
duas espécies: naturais e adquiridas. Por naturais não entendo as que um homem
possui de nascença, pois isso há apenas sensação; pela qual os homens diferem
tão pouco uns dos outros, assim pomo dos animais, que não merece ser incluída
entre as virtudes. Quero referir-me àquele talento que se adquire apenas
através da prática e da experiência, sem método, cultura ou instrução. Este
talento natural consiste principalmente em duas coisas: celeridade da
imaginação (isto é, rapidez na passagem de um pensamento a outro) e firmeza de
direção para um fim escolhido. (...) Esta diferença de rapidez é causada pela
diferença das paixões dos homens, que gostam e detestam, uns de uma coisa,
outros de outra. Em consequência do que os pensamentos de alguns homens seguem
uma direção, e os de outros outra, e retêm e observam diversamente as coisas
que passam pela imaginação de cala um. [HOBBES, 1651, p.28-29]
Os truques de
câmera evidenciam esse ‘atropelo’ dos sentimentos personificados nos objetos sem
importância acumulados no cenário. Sempre há manequins espalhados; uma parede para
atrapalhar a captura da imagem; uma porta atravessada por alguma parte do
cenário dificultando a visão ou deixando-a parcialmente observável (eis aí os
espaços para as escolhas das quais se refere Thomas Hobbes citado acima). As
próprias personagens agem com artificialidade, evidenciando o jogo corporal e
imagético de suas intensões em querer algo por trás de cada gesto e fala. A
única que escapa desse balé vazio é Marlene com sua subserviência muda. A atriz
Irm Hermann quem a interpreta dá um banho de economia e contensão em seu
trabalho de atuação, sem ser excessiva e cair no visual kitsch das demais
personagens da trama. A sobriedade dela é observada através de suas roupas
sempre de cor neutra, enquanto às de Petra e Karin são extravagantes, muito
justas e normalmente as impede de se comportarem ‘naturalmente’. Isso é
intencional, Fassbinder procura constantemente trabalhar a ideia de ‘amor’ como
um ‘objeto de desejo’ que pode ser ‘comprado’, aprisionado ou ainda mesmo
manipulado através do poder aquisitivo e de status social, daí esse acumulo de
objetos em cena exemplificando essa relação de poder através dos sentimentos
como moeda de troca, onde o ‘amor’ é barganhado, racionado e/ou medido conforme
as coisas que o represente.
O autor sugere
este comportamento em suas personagens como uma consequência imediata da
sociedade pós-industrial, onde tudo é feito para o consumo, para serem colecionadas
e compradas a qualquer preço visando satisfazer os desejos imediatos, e com
isso gerando pessoas ‘coisificadas’ e também descartáveis. Há uma fala de Karin
que sintetiza bem este pensamento:
Papai bebeu muito e... não, não foi bem assim... Um
dia seu patrão lhe disse: “Thimm, somos uma companhia competitiva e não temos
mais lugar para pessoas da sua idade”. Não tenho certeza... eu não estava lá,
mas foi algo assim. Ele se desfez em lágrimas e começou a agir com violência.
Alguém da segurança veio e o botou para fora. Ele foi para o seu bar de costume
e se embriagou. O que mais ele poderia fazer? Meu pai sempre bebeu muito. Então
voltou pra casa, matou minha mamãe e depois se enforcou. Não via nenhum futuro
para si ou para sua esposa. Foi assim que se passou. Depois fui logo para
Austrália. Mas lá as coisas não foram tão fáceis. Não se chega a nenhum lugar
sem esforço. Questão de oportunidades, etc. Se não se está na corrida como
todos, os outros ficam contentes quando a gente capota. [FASSBINDER, 1972, p.
19-20].
A trama acontece na casa-atelier da estilista,
onde sua secretária Marlene observa tudo, sabe (mais do que pode dizer) da vida
de sua patroa – por quem nutre estranhamente um amor não correspondido. Aliás,
esta é uma personagem enigmática enquanto se encontra horizontal, (apenas no universo
dramatúrgico). É através de sua verticalidade (seja no filme, seja na peça) que
percebemos suas nuances claramente. E é Marlene quem se caracteriza de exemplo
maior como refém de um amor ‘sem valor de barganha’, cuja ‘virtude’ que ela
carrega não vale nada. Ela personifica esse jogo de poderes, onde o sentimento
é aprisionado.
Interessante
observar que no script da peça, não há qualquer descrição do ambiente. Logo,
conclui-se que, seu autor deixa a critério de cada diretor executar a
verticalidade da obra, explorando suas características hipertextuais conforme
queira acentuar um ou mais aspectos conceituais encontrados na trama. As únicas
indicações de que a primeira cena se passa no quarto da protagonista é:
“Marlene abre as cortinas ruidosamente”, nada mais. Fica subentendido que a
casa da estilista é o próprio atelier – daí mais uma vez um recurso imagético que
Fassbinder utiliza para nos mostrar que o ser humano pós-moderno já não difere ou
separa sua vida emocional/social de sua vida do trabalho, tornando-o refém do
mecanicismo, essa não dissociação reflete o caminho para o aprisionamento da
sensibilidade interpessoal das pessoas em sociedade, é o famoso ‘cada um por
si...’ que Fassbinder nos mostra a todo momento em su’As Lágrimas Amargas.
Outro dado: o
ambiente não é descrito, daí a subjetivação da criação dele sendo emanando
através das falas das personagens como algo universal. O texto, porém é fechado
em si e aberto nas possibilidades para sua construção. Essa “tradução” do texto
literário para a linguagem fílmica prescinde dos recursos da estilização:
paródia e/ou paráfrase. A seguir analisaremos pequenos trechos adaptados do script
da peça para modelar o filme. Para compreendermos essa transposição de suportes
artísticos devemos considerar o teor da obra originalmente escrita como texto
dramatúrgico. N’As Lágrimas Amargas essa passagem foi ‘fiel’ ao seu conteúdo
devido a adaptação da peça para o filme ter sido executada pelo próprio autor.
Fassbinder utilizou-se da paródia e da paráfrase em alguns casos para fazer
essa passagem estilística,
Assim
como um texto não pode existir fora das ambivalências paradigmáticas e
sintagmáticas, paráfrase e paródia se tocam num efeito de intertextualidade,
que tem a estilização como ponto de contato. Falar de paródia é falar de intertextualidade
das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade das
semelhanças. (SANT’ANNA, 2013, p.
28)
Fassbinder
apropria-se da artificialidade
dos manequins espalhados pelo ambiente para tornar ‘palpável’ o caráter frio
das personagens. Constrói um cenário antinatural onde os sentimentos e desejos
secretos são parodiados pelas manequins1,
pela boneca2e3, e até
mesmo por uma foto de jornal4
onde aparece o próprio diretor, juntamente com um assistente e suas atrizes no
Set, (fotos).
(1)
(2)
(3)
(4)
Este último artificio da foto (4) ainda
pode ser analisado pelo recurso intersemiótico, onde a imagem trouxe para
dentro do filme um fragmento ‘real’ da realidade, não um fragmento ‘verossímil’
da realidade. Observamos então, um pequeno ruído metalinguístico transfigurado
em paródia da própria vida e oficio do diretor dando-nos mais uma pista enquanto
espectadores informados de que se trata de algo autobiográfico transfigurado em
ficção (?). Fassbinder é inteligente demais e irônico a ponto de mostrar e
ocultar pequenos indícios em todos seus filmes, inclusive.
Ao
fazermos paralelos entre uma peça adaptada para o audiovisual concluímos que
uma obra em formato horizontal ao ser transportada para verticalidade,
inevitavelmente é submetida a ajustes intersemióticos, que em contrapartida,
trazem à tona processos estilísticos comuns apenas ao suporte do cinema, tais
como planos; recursos de câmera e edição; construção da mise-en-scène; fotografia, locações; etc., e estas trazem
emprestadas para seu universo outros recursos, sobretudo das Artes Plásticas e
principalmente teatrais, como atesta CÂNDIDO,
“O cinema e o teatro apresentam muitos aspectos concretos, mas
não podem, como a obra literária, apresentar diretamente aspectos psíquicos,
sem recurso à mediação física do corpo, da fisionomia ou da voz” (2014, p. 11), desse modo este autor nos indica
que a obra literária sempre será superior à sua transposição seja para o
teatro, seja para o filme, devido a imaginação pessoal ser mais rica em
conexões afetivas do que qualquer outro recurso disponível para sua
concretização enquanto obra de arte exterior a nós. Essa compreensão da leitura
como fonte maior de imagens é reforçada conforme também em COSTA e FEREEIRA em
seu artigo sobre a constituição do processo de leitura segundo Vygotsky:
Ao
ler, o leitor busca a sintonia de sua própria historicidade com a do autor
(virtualizado no texto). É a tentativa de encontro real através de
virtualidades que se configuram. Neste instante, ao contatar o texto, o leitor
produz conhecimento do que está escrito. Este conhecimento é sempre acompanhado
de outra produção: a construção de imagens. São as imagens, a efetiva produção
do leitor. De tal sorte que, mais tarde, ele já não se lembrará do texto, mas
das imagens que associou ao que leu, como signo de mediação a novas leituras.
Simbolicamente, o texto produziu no leitor uma representação que, associada às
outras representações, resultam em um conjunto de figurações internas,
individuais e provisórias – posto que se atualizarão a cada leitura – que
denominaríamos fruição, ou parte de uma atividade instrumental por excelência.
Assim, o texto existe para o leitor não só como os símbolos registrados pelo
autor, mas pelas imagens que produz, as quais constituem o próprio leitor. (2011, p. 219).
.
Portanto, não há obra de maior impacto,
senão as próprias lembranças individuais que nos fazem ‘viver’ as aventuras narradas
nas folhas de um livro. Entretanto é inegável a capacidade do Cinema servir-nos
de canal sensorial e cognitivo acerca de sentimentos e compreensões outras da
realidade, que talvez nos seriam impossíveis de alcançar sem esse suporte
linguístico e artístico devido aos imediatos processos complexos de conexões mentais
que as imagens de um filme associadas à musica, à ações das personagens ao
contexto sintetizado das ações do enredo proporcionam ao espectador. Por isso o
Cinema é também chamado de A Sétima Arte, pois em pouco mais de cem anos de sua
invenção, já tem uma linguagem e sintaxe próprias, e o melhor de tudo: ainda em
(constante) construção.
Hellen Katiuscia de Sá - escrito em: 30 de Outubro de 2014.
*Este artigo também está presente no livro: DOS PALCOS ÀS TELAS DO CINEMA
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Referências:
CANDIDO, Antônio. et al. A Personagem de
Ficção. São Paulo: editora Perspectiva. Disponível em: <http://groups.google.com/group/digitalsource>
acessado em 14 ago. 2014.
COSTA, Fabiane Adela Tonetto. e FERREIRA, Liliana
Soares. SENTIDO,
SIGNIFICADO E MEDIAÇÃO EM VYGOTSKY: implicações para a constituição do processo
de leitura.
REVISTA IBEROAMERICANA DE EDUCACIÓN. N.º 55 (2011), pp. 205-223 (ISSN:
1022-6508).
FASSBINDER,
Rainer Werner. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Disponível em:
<www.oficinadeteatro.com> acessado
em 07 ago. 2014.
FOLHA DE SÃO
PAULO, 12 de abril de 2001. As Lágrimas Amargas de Petra
von Kant.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac1204200101.htm> acessado
em 12 out. 2014.
HOBBES, Thomas.
O Leviatã. (1651), Tradução de João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/98/Thomas_Hobbes.pdf> acessado
em 29 out. 2014.
MILAN, Pietro. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972).
Disponível em:
<http://segundo-plano.com/filme-as-lagrimas-amargas-de-petra-von-kant/> acessado em 08 out. 2014.
PLAZA,
Júlio. Tradução Intersemiótica. São
Paulo: editora Perspectiva, 2003.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia,
Faráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 2003.
___________ Rainer Werner Fassbinder. Disponível em: <http://filmow.com/rainer-werner-fassbinder-a101384/> acessado em 08 out. 2014.