sábado, 19 de dezembro de 2015

MEU QUEIJO POR UM BEIJO: lágrimas de um amor inventado.


Com uma filmografia invejável para apenas 13 anos de uma carreira meteórica e fecunda (nada mais que 43 filmes, incluindo curtas, séries e filmes para TV’s germânicas, além de alguns trabalhos radiofônicos), a obra do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, que morreu precocemente aos 37 anos de idade (de overdose ou suicídio, há controvérsias...), impressiona – isto, sem falar de seu trabalho como ator e dramaturgo, cujas peças migravam diretamente à telona, com adaptações intertextuais significantes para a linguagem do cinema, as quais este artigo abordará uma delas.
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant), versa sobre a hierarquia de afetos observados em sociedade; no filme este aspecto está representado pela estilista Petra (Margit Carstensen). Nesse universo temos: a jovem Karin (Hanna Schygulla) à procura ‘de seu lugar ao sol’, por quem Petra demonstra interesse, porém a moça a desdenha, e Marlene (Irm Hermann) – a secretária da estilista, que nutre um amor não correspondido pela sua patroa, ela é notoriamente desprezada e espinhada pelo objeto de sua adoração, ficando subentendido essa repulsa pelo motivo de Marlene ser da classe proletária e não possuir valores que possam ser ‘trocados’ pelo ‘afeto’ de Petra.
O filme foi concluído em 1972 juntamente com mais dois longas do diretor (A Encruzilhada das Bestas e Uma Mulher de Negócios – cujas temáticas e abordagens são totalmente diferentes entre si. Aliás, essa é uma das marcas registradas desse artista do Novo Cinema Alemão: o experimentalismo e diversidade de estilos). Embora digam que As Lágrimas Amargas é um sugestivo recorte autobiográfico de seu autor, onde se invertem os gêneros, mudam-se nomes e as circunstancias, com uma pitada aqui e ali de subjetividade fictícia. Contavam as más línguas dos críticos de plantão, que a relação de poder observada nas ligações interpessoais do filme inspirava-se diretamente na suposta relação vivida por Fassbinder e um jovem de nome Günther,  (seu amante do momento), o próprio diretor, em entrevistas, dizia ser ele a Petra do seu filme. Assumidamente homossexual, Fassbinder evoca sua visão e experiência de mundo como temática para seus trabalhos. Demonstrados  por vias tortuosamente líricas e avassaladoramente profundas. Observamos a solidão; o medo; o desespero; pessoas “deslocadas” no mundo; o desamparo; a desumanidade; preconceitos; hipocrisias, etc., em sua obra. Para muitos críticos, As Lágrimas Amargas, dentre as demais obras do autor, é o que mais se aproxima de um “cinema gay”, pois o tema e a protagonista diretamente o são,

Em Petra von Kant, a personagem principal é uma mulher, rica e aristocrata que, mesmo que não saia nunca de seu quarto, mantém relações com Madrid, Miami e Paris. Desta forma, uma das principais características da poética fassbinderiana mostra-se evidente desde o início: a alternância entre os subúrbios de classe baixa com o meio exclusivo da classe alta, assim como o revezamento dos arquétipos masculino e feminino – segundo Robert Katz, biógrafo de Fassbinder, o filme trata-se da relação entre o cineasta alemão e Günther Kaufmann transformado em um caso de amor lésbico, sendo assim, uma de suas obras mais autobiográficas. [MILAN, 2014].

Com diálogos repletos de amarguras e de existencialismo, As Lágrimas Amargas evoca algo semelhante recorrente nas obras do inglês Willian Shakespeare: a condição humana. Observamos também um toque marxista permeando as relações entre as personagens principais: Petra, Marlene e a jovem Karin por quem a estilista se apaixona. Sem ter muito sucesso com a jovem, ela reage negativamente ao constar sua incapacidade de amar sem interesse, e como consequência a protagonista entrega-se a um eterno lamento e amargura pelo mundo, emergindo um choque consensual  entre seus recém-criados valores internos e a ditadura competitiva que o mundo moderno impõe às pessoas. Desse modo, Fassbinder coloca que essa barganha entre amor e poder dificilmente trará felicidade aos participantes, assim o diretor critica o modelo capitalista em que a sociedade ocidental está submetida cegamente, onde a banalização das emoções impede de as pessoas serem ‘naturais’, e como consequência direta disto, as virtudes são vistas como um empecilho ao sucesso de acordo com os moldes que esta sociedade de consumo impõe. Como recurso cênico, o diretor alemão mostra-nos esse sedutor jogo de interesses através das vestimentas, das poses e olhares vazios das personagens ao dialogarem entre si. Faz parecer uma dança coreografada executada friamente entre Petra e Karin, através da lente de uma câmera distante e igualmente analítica dos planos. Observamos o talento individual conflituoso entre as três personagens principais mostrado no filme de Fassbinder como um exemplo contrario daquilo que Thomas Hobbes referendou em seu Leviatã:

Por virtudes intelectuais sempre se entendem aquelas capacidades do espírito que os homens elogiam, valorizam e desejariam possuir em si mesmos; e vulgarmente recebem o nome de talento natural, embora a mesma palavra talento também seja usada para distinguir das outras uma certa capacidade. Estas virtudes são de duas espécies: naturais e adquiridas. Por naturais não entendo as que um homem possui de nascença, pois isso há apenas sensação; pela qual os homens diferem tão pouco uns dos outros, assim pomo dos animais, que não merece ser incluída entre as virtudes. Quero referir-me àquele talento que se adquire apenas através da prática e da experiência, sem método, cultura ou instrução. Este talento natural consiste principalmente em duas coisas: celeridade da imaginação (isto é, rapidez na passagem de um pensamento a outro) e firmeza de direção para um fim escolhido. (...) Esta diferença de rapidez é causada pela diferença das paixões dos homens, que gostam e detestam, uns de uma coisa, outros de outra. Em consequência do que os pensamentos de alguns homens seguem uma direção, e os de outros outra, e retêm e observam diversamente as coisas que passam pela imaginação de cala um. [HOBBES, 1651, p.28-29]

Os truques de câmera evidenciam esse ‘atropelo’ dos sentimentos personificados nos objetos sem importância acumulados no cenário. Sempre há manequins espalhados; uma parede para atrapalhar a captura da imagem; uma porta atravessada por alguma parte do cenário dificultando a visão ou deixando-a parcialmente observável (eis aí os espaços para as escolhas das quais se refere Thomas Hobbes citado acima). As próprias personagens agem com artificialidade, evidenciando o jogo corporal e imagético de suas intensões em querer algo por trás de cada gesto e fala. A única que escapa desse balé vazio é Marlene com sua subserviência muda. A atriz Irm Hermann quem a interpreta dá um banho de economia e contensão em seu trabalho de atuação, sem ser excessiva e cair no visual kitsch das demais personagens da trama. A sobriedade dela é observada através de suas roupas sempre de cor neutra, enquanto às de Petra e Karin são extravagantes, muito justas e normalmente as impede de se comportarem ‘naturalmente’. Isso é intencional, Fassbinder procura constantemente trabalhar a ideia de ‘amor’ como um ‘objeto de desejo’ que pode ser ‘comprado’, aprisionado ou ainda mesmo manipulado através do poder aquisitivo e de status social, daí esse acumulo de objetos em cena exemplificando essa relação de poder através dos sentimentos como moeda de troca, onde o ‘amor’ é barganhado, racionado e/ou medido conforme as coisas que o represente.
O autor sugere este comportamento em suas personagens como uma consequência imediata da sociedade pós-industrial, onde tudo é feito para o consumo, para serem colecionadas e compradas a qualquer preço visando satisfazer os desejos imediatos, e com isso gerando pessoas ‘coisificadas’ e também descartáveis. Há uma fala de Karin que sintetiza bem este pensamento:

Papai bebeu muito e... não, não foi bem assim... Um dia seu patrão lhe disse: “Thimm, somos uma companhia competitiva e não temos mais lugar para pessoas da sua idade”. Não tenho certeza... eu não estava lá, mas foi algo assim. Ele se desfez em lágrimas e começou a agir com violência. Alguém da segurança veio e o botou para fora. Ele foi para o seu bar de costume e se embriagou. O que mais ele poderia fazer? Meu pai sempre bebeu muito. Então voltou pra casa, matou minha mamãe e depois se enforcou. Não via nenhum futuro para si ou para sua esposa. Foi assim que se passou. Depois fui logo para Austrália. Mas lá as coisas não foram tão fáceis. Não se chega a nenhum lugar sem esforço. Questão de oportunidades, etc. Se não se está na corrida como todos, os outros ficam contentes quando a gente capota. [FASSBINDER, 1972, p. 19-20].

A trama acontece na casa-atelier da estilista, onde sua secretária Marlene observa tudo, sabe (mais do que pode dizer) da vida de sua patroa – por quem nutre estranhamente um amor não correspondido. Aliás, esta é uma personagem enigmática enquanto se encontra horizontal, (apenas no universo dramatúrgico). É através de sua verticalidade (seja no filme, seja na peça) que percebemos suas nuances claramente. E é Marlene quem se caracteriza de exemplo maior como refém de um amor ‘sem valor de barganha’, cuja ‘virtude’ que ela carrega não vale nada. Ela personifica esse jogo de poderes, onde o sentimento é aprisionado.
Interessante observar que no script da peça, não há qualquer descrição do ambiente. Logo, conclui-se que, seu autor deixa a critério de cada diretor executar a verticalidade da obra, explorando suas características hipertextuais conforme queira acentuar um ou mais aspectos conceituais encontrados na trama. As únicas indicações de que a primeira cena se passa no quarto da protagonista é: “Marlene abre as cortinas ruidosamente”, nada mais. Fica subentendido que a casa da estilista é o próprio atelier – daí mais uma vez um recurso imagético que Fassbinder utiliza para nos mostrar que o ser humano pós-moderno já não difere ou separa sua vida emocional/social de sua vida do trabalho, tornando-o refém do mecanicismo, essa não dissociação reflete o caminho para o aprisionamento da sensibilidade interpessoal das pessoas em sociedade, é o famoso ‘cada um por si...’ que Fassbinder nos mostra a todo momento em su’As Lágrimas Amargas.
Outro dado: o ambiente não é descrito, daí a subjetivação da criação dele sendo emanando através das falas das personagens como algo universal. O texto, porém é fechado em si e aberto nas possibilidades para sua construção. Essa “tradução” do texto literário para a linguagem fílmica prescinde dos recursos da estilização: paródia e/ou paráfrase. A seguir analisaremos pequenos trechos adaptados do script da peça para modelar o filme. Para compreendermos essa transposição de suportes artísticos devemos considerar o teor da obra originalmente escrita como texto dramatúrgico. N’As Lágrimas Amargas essa passagem foi ‘fiel’ ao seu conteúdo devido a adaptação da peça para o filme ter sido executada pelo próprio autor. Fassbinder utilizou-se da paródia e da paráfrase em alguns casos para fazer essa passagem estilística,

Assim como um texto não pode existir fora das ambivalências paradigmáticas e sintagmáticas, paráfrase e paródia se tocam num efeito de intertextualidade, que tem a estilização como ponto de contato. Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças. (SANT’ANNA, 2013, p. 28)

Fassbinder apropria-se da artificialidade dos manequins espalhados pelo ambiente para tornar ‘palpável’ o caráter frio das personagens. Constrói um cenário antinatural onde os sentimentos e desejos secretos são parodiados pelas manequins1, pela boneca2e3, e até mesmo por uma foto de jornal4 onde aparece o próprio diretor, juntamente com um assistente e suas atrizes no Set, (fotos).

 
(1)



 (2)

 (3)

 (4)

Este último artificio da foto (4) ainda pode ser analisado pelo recurso intersemiótico, onde a imagem trouxe para dentro do filme um fragmento ‘real’ da realidade, não um fragmento ‘verossímil’ da realidade. Observamos então, um pequeno ruído metalinguístico transfigurado em paródia da própria vida e oficio do diretor dando-nos mais uma pista enquanto espectadores informados de que se trata de algo autobiográfico transfigurado em ficção (?). Fassbinder é inteligente demais e irônico a ponto de mostrar e ocultar pequenos indícios em todos seus filmes, inclusive.
Ao fazermos paralelos entre uma peça adaptada para o audiovisual concluímos que uma obra em formato horizontal ao ser transportada para verticalidade, inevitavelmente é submetida a ajustes intersemióticos, que em contrapartida, trazem à tona processos estilísticos comuns apenas ao suporte do cinema, tais como planos; recursos de câmera e edição; construção da mise-en-scène; fotografia, locações; etc., e estas trazem emprestadas para seu universo outros recursos, sobretudo das Artes Plásticas e principalmente teatrais, como atesta CÂNDIDO, “O cinema e o teatro apresentam muitos aspectos concretos, mas não podem, como a obra literária, apresentar diretamente aspectos psíquicos, sem recurso à mediação física do corpo, da fisionomia ou da voz” (2014, p. 11), desse modo este autor nos indica que a obra literária sempre será superior à sua transposição seja para o teatro, seja para o filme, devido a imaginação pessoal ser mais rica em conexões afetivas do que qualquer outro recurso disponível para sua concretização enquanto obra de arte exterior a nós. Essa compreensão da leitura como fonte maior de imagens é reforçada conforme também em COSTA e FEREEIRA em seu artigo sobre a constituição do processo de leitura segundo Vygotsky:

Ao ler, o leitor busca a sintonia de sua própria historicidade com a do autor (virtualizado no texto). É a tentativa de encontro real através de virtualidades que se configuram. Neste instante, ao contatar o texto, o leitor produz conhecimento do que está escrito. Este conhecimento é sempre acompanhado de outra produção: a construção de imagens. São as imagens, a efetiva produção do leitor. De tal sorte que, mais tarde, ele já não se lembrará do texto, mas das imagens que associou ao que leu, como signo de mediação a novas leituras. Simbolicamente, o texto produziu no leitor uma representação que, associada às outras representações, resultam em um conjunto de figurações internas, individuais e provisórias – posto que se atualizarão a cada leitura – que denominaríamos fruição, ou parte de uma atividade instrumental por excelência. Assim, o texto existe para o leitor não só como os símbolos registrados pelo autor, mas pelas imagens que produz, as quais constituem o próprio leitor. (2011, p. 219).
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Portanto, não há obra de maior impacto, senão as próprias lembranças individuais que nos fazem ‘viver’ as aventuras narradas nas folhas de um livro. Entretanto é inegável a capacidade do Cinema servir-nos de canal sensorial e cognitivo acerca de sentimentos e compreensões outras da realidade, que talvez nos seriam impossíveis de alcançar sem esse suporte linguístico e artístico devido aos imediatos processos complexos de conexões mentais que as imagens de um filme associadas à musica, à ações das personagens ao contexto sintetizado das ações do enredo proporcionam ao espectador. Por isso o Cinema é também chamado de A Sétima Arte, pois em pouco mais de cem anos de sua invenção, já tem uma linguagem e sintaxe próprias, e o melhor de tudo: ainda em (constante) construção.

Hellen Katiuscia de Sá - escrito em: 30 de Outubro de 2014.




*Este artigo também está presente no livro: DOS PALCOS ÀS TELAS DO CINEMA
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Referências:

CANDIDO, Antônio. et al. A Personagem de Ficção. São Paulo: editora Perspectiva. Disponível em: <http://groups.google.com/group/digitalsource> acessado em  14 ago. 2014.

COSTA, Fabiane Adela Tonetto. e FERREIRA, Liliana Soares. SENTIDO, SIGNIFICADO E MEDIAÇÃO EM VYGOTSKY: implicações para a constituição do processo de leitura. REVISTA IBEROAMERICANA DE EDUCACIÓN. N.º 55 (2011), pp. 205-223 (ISSN: 1022-6508).

FASSBINDER, Rainer Werner. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Disponível em:
<www.oficinadeteatro.com>  acessado em 07 ago. 2014.

FOLHA DE SÃO PAULO, 12 de abril de 2001. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac1204200101.htm> acessado em 12  out. 2014.

HOBBES, Thomas. O Leviatã. (1651), Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva.  Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/98/Thomas_Hobbes.pdf> acessado em 29 out. 2014.

MILAN, Pietro. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972). Disponível em:

PLAZA, Júlio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: editora Perspectiva, 2003.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Faráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 2003.

___________ Rainer Werner Fassbinder. Disponível em: <http://filmow.com/rainer-werner-fassbinder-a101384/>  acessado em 08 out. 2014.



quarta-feira, 16 de julho de 2014

Drawing Restraint 9


Duas horas e vinte e quatro minutos é a duração do ‘filme’ escrito e dirigido por Matthew Barney. Em principio, como já era de se esperar de um audiovisual assinado por ele, as imagens contemplativas, serenas e lentas transferem ao espectador um estado de relaxamento e meditação – isto é, para quem já está acostumado e educado a apreciar filmes de arte cujo tempo e temporalidade não estão nem aí para a velocidade pós-moderna.


“Drawing Restraint 9” (2005) requer paciência... muita paciência e um pouco de compreensão dos rituais religiosos e sociais japoneses. Mas não se engane – detrás das imagens tranquilas e lindamente enquadradas mostrando todo um rito delicado e cotidiano que o povo nipônico detém em detalhes sobre as mínimas atividades (como a cerimônia do chá), bem como detrás das imagens bucólicas; da beleza natural; de paisagens amenas, esconde-se algo insólito e severamente forte.


O coito entre os “noivos” (Matthew Barney e Björk, sua esposa na vida real neste período) e o amor deles retratados de modo comparativo a uma difícil metamorfose e superação de barreiras para os seres mitológicos em ascensão, é traduzido por Barney de forma visceral (!) – as cenas mais lindas e também mais perturbadoras de todo o filme. Elas vêm acompanhadas de uma melodia tradicional japonesa extremamente dramática e expressiva, que eleva a agonia do espectador em 100% mediante as imagens. Chega ao ponto de massacrar a vista e embrulhar o estomago pelo coito dos noivos imersos de baixo de um caudaloso rio de vaselina. Comem-se (no sentido lato da palavra), simbolizando uma cumplicidade eterna dos amantes, e também o ritual de preparação das carnes marinhas após o abate.


Tudo trágico e avassalador. O avesso dos gestos contidos e delicados, retratados minuciosamente em todo o filme através do comportamento, rigidez e disciplina dos orientais. Se no amor, os sentimentos escapam a todo critério de ponderação, a cena do coito entre os noivos é algo realmente belo e ao mesmo tempo (incrivelmente) assustador e sobrenatural, tal como as manifestações mitológicas do povo japonês. “Drawing Restraint 9” de Matthew Barney incorpora alguns aspectos icônicos e simbólicos desses mitos, apresentando uma releitura visual dos mesmos. Saber sobre alguns deles pode facilitar na leitura e compreensão da obra.


Em todo momento há a simbiose entre o passado lendário e o presente tecnológico que faz girar a economia japonesa de exportação da pesca industrial da carne de baleia. A lenda da criação do mundo (conforme o folclore nipônico) acompanha o inconsciente de tudo o que acontece no “presente” retratado neste audiovisual de Barney. Identifica-se “Amenonuhoko” – lança encantada cravejada de joias do casal de deuses (os primeiros “Kami”, os principais) que criaram as ilhas japonesas; as formas animísticas dos deuses válidas no Xintoísmo, revelada mais tarde nos noivos durante seu primeiro coito, onde o ato em si os transforma aos poucos até a aparição da real condição de seus corpos – são alguns exemplos.


O elemento Água, (onde tudo começou conforme  criação do mundo pela mitologia nipônica) manipulada nas mãos dos “Kami” principais, através de suas lanças encantadas – podemos identificar essa simbologia através da transformação liquida para gelatinosa da enorme quantidade de vaselina armazenada no grande recipiente do navio (que podemos inferir também à transformação emocional do “casal”, bem como sua transformação física mais adiante); e também na cena das crianças preparando pequenas porções de camarão com uma espécie de patê – essas crianças facilmente podem ser identificadas como os filhos – pequenas divindades que nasceram quando os dois “Kami” principais tiveram seu primeiro contato com as águas terrestre – e também nos remete aos rituais de agradecimento pela boa pesca.


Para Matthew Barney o que importa mesmo em sua obra de audiovisual, é a utilização deste suporte artístico para valer-se como canal expressivo, portanto, “Drawing Restraint 9” não é um filme filme, como compreendemos ser os filmes (com roteiro, personagens, Mise-en-scène, etc.). Barney é um artista plástico que usa os recursos do audiovisual para dar vida ao componente artístico que ele quer configurar. “Drawing Restraint 9” é uma obra de arte que faz parte de uma peça maior. Um projeto intitulado do mesmo nome, porém, composto de 19 partes enumeradas em diferentes suportes (desenho, escultura, música, instalações e vídeo-arte), que Matthew Barney idealizou quando ainda era estudante na Universidade de Yale. Devido a isto, “Drawing Restraint 9” é apenas uma manifestação artística dessa série. Barney utiliza o suporte do audiovisual para convidar o espectador a ter uma experiência plástica sensória profunda através das imagens em movimento que o audiovisual pode proporcionar.



Hellen Katiuscia de Sá –  16/julho/2014.

sábado, 3 de maio de 2014

SÁBADO DE ALELUIA _curta de bolso

Fiz aproveitando a luz que estava tão bonita nesta manhã, quando filmei... e quando se mora num casarão de mais de cem anos, tudo é inspirador. Este curta de bolso é mais um exercício do olhar, uma brincadeirinha séria.


EIKA KATAPPA – Werner Schroeter/1969.


A dor da morte... do esquecimento... da saudade. O cordeiro, o anjo, e a Virgem. O anjo mata o cordeiro. A Virgem beija o cordeiro. O Cordeiro sai andando feito homem e recria sua vida. As ressignificações dialéticas nas passagens de tempo e ritos. O homem ressuscitado. Encenações entrecortadas de lendas alemãs e também religiosas no subconsciente das imagens. A dramatização da voz suavizada por encenações made in cinema mudo. A sociedade é um enorme teatro de arena, acolhedora de representações significativas das nossas vidas. Em algumas situações percebe-se a esmagadora aflição que permeia o ser humano pelo ato de “estar no mundo”, como algo desesperador. O esplendor das cenas como murmúrios de todas as paixões, onde tudo cabe, menos a omissão.


Um dos melhores e mais profundo expoentes da Arte pela Arte do Novo Cinema Alemão, EIKA TATAPPA  é uma grande celebração e contentamento em prol do estado (e ato) de “estar vivo” com toda sua profundidade, vicissitudes, asperezas e leveza. Uma atmosfera musical pontuada por retalhos de ações ao estilo de uma Nouvelle Vague. Neste caso, o filme transborda sentimentos pela musica, através da musica... pela imagem, através da imagem repleta de idiossincrasias. Uma leitura audiovisual da forma em conformidade de uma câmera cumplice dos atos executados em cena. Acontece a exaltação do ator. Magdalena Montezuma se sobressai em suas atuações, com bastante expressividade e visível trabalho de interpretação e preparação corporal. A então jovem atriz faz brilhar todos os sonhos estampados em seu rosto num frescor de esperança que generosamente empresta ao filme de Schroeter – seu amigo e diretor.


A lente objetiva compartilha as tensões e emoções apresentadas pelas personagens. Guerras seculares das civilizações sintetizadas em duetos ou tercetos pelos atores em cena. O sofrimento de maneira simbolizada através dos gestos exagerados em atuações delirantes, porém, contundentes no sentido de fuga da realidade e transbordante de verbalização incontida – o extra cotidiano sob alegoria das formas. O controle social que esmaga o homem, impedindo-o de atingir o patamar de Homo Ludens;  mas Werner Schroeter insiste seguindo com suas personagens ora morrendo, ora ressurgindo a toda força, porque “a vida é muito preciosa, como agora”.


Em alguns pontos a sugestão da religiosidade emerge como sintomas de arrependimentos, ou como fonte histórica de repressão dos sentidos. Há leves referencias ao preconceito de gêneros com cenas de morte e ressurreições incessantes como que indicando a queda do conceito binário existente e ainda arraigado no imaginário da humanidade. Schroeter sugere um renascer constante das ideias sobre a vida, refletindo também ao que se reflete à sua vontade de realizar um novo conceito de cinema. Se a própria vida não é exatamente um roteiro reto a ser seguido. Há planos que são mais ou menos realizáveis... assim é a visão de realidade em EIKA KATAPPA, uma releitura sobre os sentimentos mais secretos dentro da alma humana, cuja a música seria a única capaz de fazer emergir.


Muitas cenas vêm acompanhadas de off’s, numa delas há uma narração em prosa sobre o que a vida pode representar, argumentando que todos os momentos são preciosos, mesmo os sentimentos não compartilhados entre os amigos, os momentos de solidão e melancolia, mesmo às dores e misérias da alma. Toda vida é preciosa.

A representação de uma esperança que morre pelo caminho gritando e se contorcendo de tanto esperar pela iluminação das mentes e dos corações humanos. Uma esperança personificada que agoniza no chão repetidamente sob o off: “A vida é muito preciosa...”. Esta cena é entrecortada por outra – uma dança numa espécie de cabaré, subentendendo-se que a vida está sob nossas vistas e sentidos, cuja Dança nos confirma nossa capacidade de deslocar os acontecimentos conforme o jogo estético (mais ou menos consciente). Então a “esperança” morre, mas a estrada fica, ou seja, sigamos adiante mesmo com o aparente vazio... sigamos!

EIKA KATAPPA parece uma enorme memória coletiva que desencarna e deixa escapar no ar esses momentos sagrados que todos temos ao longo de nossas vidas, porem não damos muita importância ou intensidade adequada, por desatenção talvez, ou por inércia. Há os momentos solenes, os momentos descontraídos, os momentos de sofrimento... mas em todos eles, o filme sugere dançar, celebrar para não permitir que a deformidade da vida afronte o espirito do homem que é livre... porém, se encontra momentaneamente aprisionado e limitado a um corpo físico. O filme brinca com esses aspectos sensíveis escondidos ou calados em nós, por força do cotidiano esmagador e sem poesia. A poesia está em nós e devemos libertá-la... por isso a música, por isso dancemos! Celebremos a vida...


As ressignificações humanas para aquilo que não encontra comunicação objetiva dos pensamentos, dos sentimentos, desejos e vontades. A exaltação da Arte como via  expurgatória das sociedades. A purificação do Ser através do conceito de Beleza transfigurada e renascida pelas mãos humanas num ato de redenção da própria espécie. Um abandonar e reatar contínuos desses estados de espirito ora depressivos, ora de euforia, numa costura da vida coletiva, que Schroeter faz surgir nesses retalhos entrecortados de musicas.


A exaltação da efemeridade e continuidade da vida. O esforço dos versos imagéticos para diluir a dor em alegrias sonoras, significando as passagens de animo e de esforço para vencer os obstáculos psíquicos inerentes apenas à raça humana. Em sociedade a solidariedade é um esforço sobre-humano e o arrependimento a força motriz para algo melhor. O próprio Schroeter aparece dirigindo o ator numa cena, ambos ao lado de vasos. Os vasos que na liturgia Cristã faz alusão ao recipiente do Espirito de Verdade – ou Espirito Santo, em outra ramificação Cristã – e esse vaso é propenso de semeadura feita por cada qual. Nessa cena simbólica e também metalinguística, Werner sintetiza seu filme inovador e diferente, propondo que todos podem melhorar e recomeçar o gesto, recomeçar e reinventar o viver. Desde que com entrega... porque “a vida é muito preciosa, como agora”.






Katiuscia de Sá
Em: 09, 13 e 14 de abril, 2014.
Às: 01:40H.