terça-feira, 30 de outubro de 2012

SOCIALISMO, de Jean-Luc Godard


O filme é entrecortado por vários acontecimentos, diria melhor: vários retalhos de momentos variados de vida de pessoas quaisquer. Há, porém, um elo entre essa balburdia de Babel, que pode dar um sentido ao quebra-cabeça: um navio transatlântico navega pelo filme inteiro, com seus tripulantes ora conversando, ora lembrando-se de algo, ora apenas olhando a calmaria ou fúria do mar. As águas correndo remetem o escorrer do tempo.

A impressão que eu tive do filme com esses recortes e diálogos e cenas meio ‘desarrumadas’, é que se trata dos pensamentos que escapam das mentes dos passageiros a bordo do navio. Veio-me a lembrança de outro filme que se passa em grande parte dentro de uma nau –  ‘E La nave Vá’, de Frederico Fellini, um de meus filmes favoritos pela poesia, fluidez onírica e delicadeza da obra; tive o privilégio de assisti-lo no cinema quando mocinha, em sessão especial certa vez! – entretanto, o transatlântico de ‘Socialismo’ deixa escapar cenas e as vozes aleatoriamente, invadindo imagens referentes a outros personagens e/ou acontecimentos, digamos assim. Sugerindo que tudo está interligado, pois estamos no mesmo barco, afinal... sim, os passageiros do transatlântico do filme e quem os acompanha olhando o filme.

Em alguns momentos identifiquei-me com o garoto que vaga livremente a bordo do navio, e explora tudo sem qualquer preocupação ou prisão. Ele também em algumas passagens funciona como elemento de ligação. Aqui igualmente se registra a pegada inconfundível da Nouvelle Vague, da qual o próprio Godard foi um dos pais; as características mais evidentes: a não-linearidade dos acontecimentos; vozes em off; letreiros na tela preta entrecortando cenas; assuntos políticos inerentes à contemporaneidade.

Outra coisa que incomode talvez o espectador que não tem o olhar educado para diferentes estéticas e propostas de filmes menos compromissados com o estilo clássico de montagem e efeito de sonoplastia, por exemplo, pode se sentir deveras agastado ao assistir ‘Socialismo’. Acredito que Godard joga com a sonorização do filme para ‘sacudir’ mesmo o espectador na poltrona de cinema... sugerindo que ele não se acomode, não durma, tenha a experiência sensitiva não apenas através do olhar sincronizado aos ouvidos, pois na vida as coisas surgem  em velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente, e quem está apto a captar essas nuances dos acontecimentos cotidianos, está mais apto a safar-se na seleção natural da evolução intelectual e dos sentidos.

Esse raciocínio pode ser captado com algumas falas em off: “Sabe-se que quando alguém vai para o Sul, a latitude torna-se negativa. E tudo o que resta é ir ao Norte, querida alma, querida amiga”/ “Estamos encarando uma espécie de zero. Certa vez encontrei o Nada. E era muito maior do que alguém possa imaginar”/ “Todo movimento em uma superfície plana que não é ditado por uma necessidade física, resulta em uma afirmação espacial dele mesmo, seja ao construir um Império, ou ao se fazer turismo”/ “Qualquer um pode fazer algo porque Deus não está aqui”.

Outro recurso estético, que também acredito não estar à toa no filme, traduz-se em partes de imagens tão saturadas e/ou com baixa definição... também convidando o espectador a (re)educar seu olhar não somente para o filme, como também para a vida; como se Godard transferisse para a tela de cinema a impressão de olhar turvo das pessoas que muitas vezes veem algo mas não enxergam em sua totalidade, parece que a vista está turva diante de acontecimentos do dia-a-dia. Godard já sem a menor preocupação em agradar a massa, é direto e cru em suas assertivas: quem alcançar, alcança... quem não conseguiu ou desiste ou corre atrás para compreender o que seu filme diz. E diz tanta coisa ao mesmo tempo.


Godard chega ao refinamento da linguagem cinematográfica, dispensa os simbolismos e associações mais evidentes que o publico já está acostumado e educado para detectar nos filmes; ele discorre freneticamente nas informações audiovisuais; querendo retratar o ritmo de nosso tempo pós-contemporâneo (talvez). Aqui também me vem algo na cabeça que se relaciona com os recortes e falatórios e imagens no decorrer do filme: que tudo está interligado, porém igualmente em constante transformação. A vida não é algo fechado, é dinâmica, os rumos podem ser trasladados a qualquer momento; basta querer ir, arriscar-se... a maré é avassaladora.

“Abandonar o navio...”. Voltando às minhas impressões sobre o filme de Godard. Uma de minhas cenas favoritas é a passagem de dois gatinhos miando... que amor! – Adoro gatos, já tive muitos de estimação! E tenho uma que está sempre comigo quando eu estou em casa –  podemos pegar esta cena e associar ao dilema da (falta de) comunicação adequada com o outro... o que eu falo e o que o outro compreende... as deficiências da linguagem.

Na cena os gatinhos miam entre si parecendo até uma conversação entre eles, em seguida uma moça aparece vendo essas imagens em seu computador e repete a onomatopeia ‘miau’ em forte dilema entre o que comumente se encerra para compreensão desta grafia. Verifica-se que há diferenças daquele som linguístico felino sintetizado pela gramática humana. O auditivo difere da palavra escrita e pronunciada... não existe apenas o ‘miau’, há também o ‘ron-ron’, o ‘fru-fru’, o ‘hmm’ como representante fonético do felino para a língua humana. Desse modo há também as diferentes compreensões de enunciados quando conversamos com um interlocutor.

A questão é: eu ou você estamos realmente abertos e interessados a escutar o que o outro tem a nos dizer? Seguindo a mesma cena: a moça diz para alguém fora de plano que “ ’Miau’ é como os antigos egípcios chamavam seus gatos”. Entretanto, seu interlocutor nem liga para o que a moça diz e ainda pede para ela ficar calada... Vivemos numa sociedade de imposições, tirania, dominação, subjugação do semelhante. Onde quem grita mais, vence e dane-se o modo particular de cada um em manifestar suas ideias, em manifestar-se como verdadeiramente é, em manifestar suas vontades. Tudo é tragado pelo comportamento em serie e de intransigências.

Aí eu volto novamente ao que coloquei anteriormente [na vida as coisas surgem  em velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente]. A linguagem humana é deficiente em seu alcance de transmissão, quanto de recepção. Precisamos de variados suportes para dizer tudo o que pensamos ou sentimos. O dialogo e o entendimento é algo comparável ao compasso de musica: deve ter tempo, ritmo, métrica, harmonia... e tais elementos somente são alcançados quando se escuta a si e ao outro com igual interesse e atenção.

Na mesma cena segue-se um diálogo entre a moça que fala a palavra ‘miau’ e outro interlocutor, agora uma voz feminina que fala em alemão, em resposta da moça do ‘miau’ que fala em francês. Em seguida entra uma filmagem antiga de combate, a narração fala sobre a guerra entre franceses e alemães... a cena é interrompida por outra em terrível definição de imagem, e há um dialogo entre um velho e uma mocinha numa festa:

VELHO: “Você sabe o que significa 'kamikaze' em japonês?”

MOCINHA: “A divindade do vento?”

VELHO: “exato.”

Acho que dentre as várias coisas que o filme ‘Socialismo’ mostra e refere-se, eu escolhi como tema principal, que segundo o meu entendimento é a (in)comunicabilidade e dificuldade que os seres humanos têm de se relacionar com as diferenças: os diversos cacos de imagens e falas nos remete às simples ações de boa-vontade: olhe e veja; escute e fale; ame-se e respeite o próximo igualmente. A própria estrutura do filme nos remete a essa falta de compreensão das coisas, na dificuldade de ver e enxergar de fato; da dificuldade de ouvir o próximo. A estrutura como o filme se mostra adere também seu conteúdo à forma; percebi essa aderência de alma e aparência semelhante ao encontrado no filme POCILGA, de Pier Paolo Pasolini.

Godard nos convida a simplificação das coisas, não à compreensão simplória das mesmas, e perambula sobre isso em seu filme através de diversas maneiras de tocar no assunto da comunicação como chave-mestra para a Paz no macro e micro mundo das pessoas; o diretor utiliza-se da História, da Sociologia, da Psicologia, do Existencialismo, da Economia Mundial,  da Antropologia, da Filosofia para nos dizer isso. Adverte-nos em diversas passagens do filme que o quê importa é o sujeito e não suas posses e poses. O resgate da valorização da pessoa e não do objeto que a orna. Há uma fala interessante ao longo do filme que ilustra isso, e ainda faz um profundo resgate histórico num resumo dos fatos incrível nesse dialogo breve:

HOMEM UM: “O dinheiro foi inventado para que as pessoas não tivessem que se olhar nos olhos”.

HOMEM DOIS: “Então, de volta ao Zero, meu amigo”.

HOMEM UM: “Felizmente, foram os árabes que o inventaram. Não temos que pagá-los pelo copyright.”

HOMEM DOIS: “Normal: os números negativos foram inventados na Índia.”

HOMEM UM: “Eles fizeram alguma coisa na Arábia, antes de chegarem à Itália. Fibonacci foi o primeiro a utilizá-los, quando os britânicos deixaram Israel... O quê, exatamente, você fez com o dinheiro do Banco da Palestina?”


O dinheiro – riqueza e poder – Justamente a mola-mestra do mundo: tanto constrói como destrói, dependendo da sua aplicabilidade de valores. (...) Um fato interessante que eu notei no filme de Godard. As cenas de pior definição visual normalmente são as das festas... será que ele sugere que o velho ‘ Pão e Circo’ distrai a massa dos assuntos mais sérios como a politica, a economia, a educação, a melhor distribuição per capita de renda entre os Países? E as águas rolam... com tubarões acuando cardumes de peixes menores.

Uma sensação boa que o filme de Godard me deixou, foi por causa de alguns enquadramentos como se a câmera apenas estivesse observando o cotidiano das pessoas dentro do navio. Em algumas cenas os indivíduos não representam, apenas são o que são. E o enquadramento da câmera vem de um ambiente de fora de onde essas pessoas estão. O olhar voyeur do cineasta torna seu filme cheio de quebra-cabeças algo mais próximo da realidade, pois o dia-dia é também picotado em menor proporção de informações e pensamentos, mas também nos é assimilado dessa forma, se formos observar.

Deixei-me conduzir de toda informação possível que consegui apreender do filme. Fiquei bastante aberta ao mesmo, porém também não o assisti de forma linear, dei pausa e fui fazer outras coisas, fui assistindo-o aos pedaços... e isso não faria a menor diferença mesmo! “A mente tira da matéria percepções que transforma em seu alimento e o devolve em forma de movimento no qual expressa sua liberdade.”, eis uma das falas mais belas do filme em minha opinião, na voz do menino que aparece vez por outra sempre livre explorando o espaço do navio, e que bem no inicio do filme um velho o chama de ‘criança encapetada’ por ele não seguir as regras de ninguém e ir saciando livremente sua curiosidade de explorador.

Lá pelas tantas eu já estava curiosa para saber aonde o transatlântico iria aportar de vez. “As ideias nos separam. Mas os sonhos nos aproximam...”, outra bela frase dita em ‘Socialismo’.

“Mostrar, antes de tudo. Mostrar o que é possível. Isso é tudo.”

“O quê, por exemplo?”

“Não falar sobre o invisível. Mostrá-lo.”

Não perder-se em elucubrações sobre a vida, e sim vivê-la. Conseguir o equilíbrio entre conhecimento adquirido nos livros e a praticidade da convivência coletiva... evitar tornar-se arrogante e apartado da civilização. Ter bom senso e interatividade com seu semelhante: escutá-lo, compreendê-lo e fazer-se compreender; pois o conhecimento alarga as percepções e a priori, deveria libertar o ser das armadilhas sociais. O conhecimento deveria deixar-nos mais humildes do que arrogantes, (em minha opinião).

“O sonho do Estado é ser sozinho. O sonho do indivíduo é tornar-se dois.”

O tempo é um mistério encerrado através da maquina inventada pelo homem – o relógio –  que ao mesmo instante aprisiona as horas corridas manifestando a incapacidade do homem em detê-las. O relógio ergue-se como uma pequena antítese de si mesmo. A negação da existência que existe através do tempo contado e morto assim que nasce através dos ponteiros. Nascemos, e a única certeza que sabemos é que iremos prescindir do tempo que se escorre. Daí muitas passagens da segunda parte do filme de Godard – pois em minha opinião ‘Socialismo’ tem três momentos –  discorre sobre as decisões que cada um toma a partir do momento que se descobre a si mesmo.

 “A liberdade é cara...”
“Que horas são?”
“Nada mais que a hora certa”.

“Quando a lei não é justa, a justiça passa por cima da lei”.
Entretanto, do pó viemos e ao pó retornaremos. ‘Socialismo’ de Jean-Luc Godard não é um filme fácil, traz inúmeras possibilidades de compreensão, assim como a vida nos revela variadas formas de vivê-la. A escolha e conhecimento para interpretá-la são de cada um.


Katiuscia de Sá
29 e 30 de outubro de 2012.

E agora?



"Faço votos que o novo prefeito de Belém consiga encerrar o processo de tombamento do cinema Olympia. Só assim ele caminhará saudável para os 101 anos. Ou mais. A sala nos orgulha pela longevidade e história social que guarda como poucos espaços de nossa terra". 

[Pedro Veriano]
*Jornal O Liberal, 29 de Outubro de 2012.

*O Cinema Olympia é o cinema mais antigo do Brasil em funcionamento, ele completou em 24 de abril  de 2012, 100 anos de atividades. Atualmente o primeiro curso de Cinema da região Norte, pela Universidade Federal do Pará, quer utilizar salas ociosas desse espaço, justamente agregar maior valor e compromisso com a memória cultural do estado, ajudando a preservar este prédio já tombado por Lei.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

FAUSTO nas telas do cinema

Não é à toa que a obra literária alemã de Goethe com seu “O Fausto”, que originalmente foi escrito em poesia, (mas em algumas trasladações para outros idiomas encontra-se em prosa) é uma infinita inspiração para criações de peças teatrais, óperas, pintura e também para o cinema. “O Fausto” do escritor iluminista é uma interpretação da memoria coletiva germânica da Baixa Idade Média que narra a lenda do suposto médico homônimo, que também seria astrólogo e (diziam ainda) esotérico e alquimista que viveu entre os séculos XVI e XVII na região Nórdica; mas o que diferenciava este dito individuo dos cidadãos normais de sua época seria seu pacto com o sinistro em troca de conhecimento e poder; é o que o povo falava, né! Tanto falava que atravessou séculos...

De seus oitenta e três anos Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), dedicou a ‘Fausto’ exatamente quarenta anos de sua vida, sendo acrescentada postumamente uma segunda parte que tornaria sua obra um livro magistralmente imortal, poético, histórico, filosófico e até mesmo humanístico. Além da beleza métrica, os versos encerram algo tão extraordinário de se fazer: transcender a beleza da forma para o significado prático das coisas e, diga-se de passagem, quando a forma adquire tamanha leveza e subjetividade a compreensão denotativa pode ficar prejudicada, o que não acontece em ‘Fausto’ de Goethe.

A primeira versão da obra literária para o cinema manifestou-se em 1926, através do coração e mente do cineasta tudesco F. M. Murnau (1888 – 1931) sendo totalmente orientado pelo expressionismo alemão, e efeitos especiais tanto no set de gravações através de artimanhas cenográficas, como na montagem de imagens sobrepostas através de breves fusões, closes e mais explorações experimentais da sintaxe do audiovisual ainda em seu abrir de olhos como arte recém-nascida. O filme era mudo na voz mas não mudo no discurso, que aparecia em letreiros para não deixar duvidas.

‘Fausto’ de Murnau impressiona e penetra no coração de quem o vê de forma indescritível! Uma obra perfeita que, em minha opinião, dificilmente poderia ser suplantada no cinema – entretanto, com o tempo percebo que a linguagem cinematográfica é uma ferramenta de conotações infinitas e ainda vindouras, que sabiamente utilizadas aliadas à imaginação, amor e razão, poderá gerar infindáveis manifestações para o audiovisual, e o interessante que nunca nenhuma matando seu antecessor, e sim o agregando, como um belo exemplo de comunhão criativa.

Como imagem e fantasia o ‘Fausto’ expressionista dos primórdios do cinema, alcança através das imagens em movimento, do claro-escuro inerente à proposta estética cinematográfica utilizada, a transcendência oferecida pela obra de Goethe. É uma atmosfera translucida, suave e assustadora, como num sonho... um sopro de poeira que turva os olhos para o real alcançando estratos de fantástico. Também Murnau bebeu nos quadros da Renascença e do Neo-Clássico para montar algumas sequencias de imagens, e obteve com isso espetacular sucesso estético e vida em suas cenas. As interpretações dos atores (que hoje podem parecer exageradas), completaram o quê de desespero e treva moral e intelectual onde vivia o personagem ‘Fausto’.

Em 1994 o cineasta tcheco Jan Svankmajer –  considerado um dos mestres do stop-motion da atualidade –  mistura em seu ‘Fausto’ atores com marionetes, cujas ações são transportadas para  a contemporaneidade; o extraordinário aqui é a fantasia que ganha vida através de seres inanimados e controlados por uma Força que não se sabe exatamente da onde vem (no enredo...). O fantástico e sobrenatural atravessam as coisas e com isso o espectador é convidado a experimentar o estranhamento beirando o surrealismo que Svankmajer é mestre em realizar para o cinema.

Seu filme sobre ‘Fausto’ é repleto de simbolismos, sugestões do lado magico, profano e fantasmagórico que amedronta o ser humano justamente por mexer a natureza secreta das coisas. Considero um filme perturbador. E o mais inusitado ainda: Svankmajer transporta quase todas as ações da trama de Goethe para dentro de um sinistro teatro, com trejeitos de teatro medieval de fantoches, cujas conotações são grandiosas pela utilização do artificio de títeres e também da agonia visual gerados pelo recurso do stop-motion. Vale à pena conferir essa leitura estética e bastante surreal do cinema para obra poética de Goethe.

E bem recente nos deparamos com ‘Fausto’ do diretor russo Aleksandr Sokurov, que arrematou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2011. Realmente uma obra cinematográfica, a meu ver: perfeita! Considerei também uma livre interpretação da lendária historia do medieval Dr. Fausto que atravessou o tempo e se imortalizou através de Goethe e Thomas Mann (1875 – 1955), de quem Sokurov também teceu suas conexões mentais para concepção de seu filme.

A fotografia, figurinos e cenários harmoniosamente perfeitos, também inspirados diretamente das Artes Plásticas de pintores como Rembrandt, Bosch, El Greco e Gioto; daí a beleza insondável da composição estética. E para alcançar o inaudito, danação e desespero de ‘Fausto’, Sokurov ainda brinca com distorções de imagens; de planos-sequencias; da utilização da paleta de cores para seu filme em cinza-ocre, um desbotado azul-turqueza e verde-musgo aderindo um eterno Inverno, sujeira e encardido à realidade miserável de ‘Fausto’ (interpretado pelo ator Johannes Zeiler) –  um homem letrado, conhecedor dos mistérios metafísicos, da Astrologia, Filosofia, Medicina, etc... que entretanto, não tem dinheiro sequer para comprar comida, vive numa eterna busca para o significado de seus dias em desvendar onde está a Alma do ser humano, e a sua própria...

‘Fausto’ recorre ao agiota ‘Mauricius’ (interpretado pelo ator Anton Adasinsky) –  sendo este a adequação para ‘Mefistófeles’ da obra de Goethe no filme de Sokurov. Eu diria que tudo escorre pelo tempo cinematográfico. O filme é líquido para demonstrar a situação enrijecida  da Idade das Trevas. Com 2h15 de duração há quem ache essa evaporação lenta... eu achei perfeitamente adequado à situação ora onírica, ora histórica inerente ao próprio filme. Sokurov, acima de tudo, utiliza a ferramenta e sintaxe do cinema a favor de sua obra. Nada escapa. Tudo no seu devido lugar. Em alguns momentos (e isso é inevitável), cheguei a lembrança sensorial dos filmes de Tarkovski.

O que me chamou atenção também era o olhar do agiota. Um olhar indescritível encerrado numa atuação primorosa, a personificação de ‘Mefistófeles’ da obra de Goethe num bufão. Para quem conhece as particularidades entre palhaço, clown e bufões sabe que este ultimo é tido como o mais intelectual em suas criticas sociais e também o mais cruel e grotesco possível; perfeito para encarnar ‘Mefistófeles’ a tal ponto de ficar no meio termo entre o demoníaco e algo mais verosímil em ações. A surpresa do sobrenatural é revelada na cena das lavadeiras, quando sem pudor ‘Mauricius’ se despe para o banho. A fotografia do filme inteiramente harmoniosa e perfeita em sua forma.

Outro artificio que achei primoroso, foi o diretor russo valer-se da sensação de claustrofobia – ‘Fausto’ com sua imensidão e desejo infinito pelo Saber, preso naquele corpo limitado e humano da Idade Média mostrado frequentemente em lugares apertados, cavernas, becos, passagens secretas e escuras. Também a sensação  de aperto e mal-entendidos corporais de gestos e ações vividos pelos personagens contribuía para essa atmosfera desesperadora presa no interior de ‘Fausto’.

Eu queria saber alemão fluente para não perder tempo com as legendas para sorver-me inteiramente pelas imagens belíssimas da composição de todas as cenas. O filme é perfeito mesmo! Acho que nunca havia presenciado total domínio das ferramentas e sintaxe da linguagem cinematográfica por outro diretor desde Charles Chaplin, Orson Welles, Herzog, Kurosawa e Tarkovski – cada um em determinado período da história do cinema. ‘Fausto’ de Sokurov é belo, sinistro, metafísico.

O sorriso perturbador de ‘Margarida’ (interpretada pela atriz Isolda Dychauk) na cena do enterro de seu irmão, quando ‘Fausto’ ensaia um tocar nas mãos da menina e ela o submete a um sorriso macabro e realmente indecifrável, dialoga com a suspeita convidativa ao espectador temer se ela realmente seria a encarnação da luz para a vida de ‘Fausto’... fato também endossado na cena em que ele satisfaz seu desejo de possui-la. Cena tão onírica... tão perturbadora. O amor aqui levado ao equivoco da compreensão de ‘Fausto’ que repetia sem parar: “preciso ir embora daqui”. Nesse caso o que ele procurava com sentido para sua vida, foi também apodrecido pelo sinistro contrato com ‘Mauricius’ – o amor em sua plenitude tornou-se moeda de troca pelos desejos sexuais do médico, perdendo desse modo a sublimação de sua alma.

‘Fausto’ de Sokurov fica em aberto da compreensão de quem enganou quem nessa história. Se o doutor protagonista é levado pela podridão de suas próprias vontades ou induzido pelo sinistro? Se Margarida realmente não sabia das reais intenções de dr. Fausto em persuadi-la. Como toda obra genial, não conclui nada, apenas traz à tona reflexões que se completarão à sorte de cada juízo individual. Belíssimo filme realmente.



Hellen Katiuscia de Sá
19 de outubro de 2012.
04:06 P.M.
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FICHA TÉCNICA:

"FAUST"
Diretor: Aleksandr Sokurov
Elenco: Johannes Zeiler, Anton Adasinsky, Isolda Dychauk, Georg Friedrich, Hanna Schygulla, Antje Lewald, Florian Brückner, Maxim Mehmet, Katrin Filzen, David Jonsson
Produção: Andrey Sigle
Roteiro: Aleksandr Sokurov, Marina Koreneva, Yuri Arabov
Fotografia: Bruno Delbonnel
Trilha Sonora: Andrey Sigle
Duração: 134 min.
Ano: 2011
País: Alemanha
Gênero: Drama
Cor: Colorido
Distribuidora: Imovision
Estúdio: Proline Film


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

FAHRENHEIT 451



Nunca na minha vida eu tive tanta dificuldade em assistir a um filme como tive em “Fahrenheit 451” de François Truffaut, não como problema para compreendê-lo e sim pelas cenas de violência psicológica (pelo menos para mim), onde os bombeiros-investigadores-inquisidores vasculhavam casas e moradores atrás de algo ilegal, que no enredo eram os livros. Já na primeira sequencia de “Fahrenheit” senti-me desconfortável ao ver um pequeno amontoado de livros sendo queimado no meio da rua em sinal expresso de que a cultura e o direito a ela era algo condenável e destrutivo para a sociedade...

Aguentei a cena... , e à medida que o filme evoluía fui tomada pelos cenários internos, muito cleans (agradáveis até esteticamente), um misto de tradicional com pitadas de um futurismo subentendido – discreto; a estória pra lá de escancarada beirando o nonsense dialogando freneticamente com o que reconhecemos de realidade nossa, entretanto, o ilegal aqui é o contrabando e leitura de livros. A população extremamente alienada em suas posturas, como robôs alheios de si mesmos, sem sentimentos ou fugindo deles, sem lembranças do que a sociedade era antigamente.

Um filme genial e perturbador com discurso visivelmente gritando ao que consiste na liberdade intelectual do ser humano. Lá pelas tantas eu realmente não suportei, dei pausa. Havia chegado à cena em que os ‘bombeiros’ invadiam uma enorme casa que abrigava em todos seus compartimentos várias sub-bibliotecas. E prevendo a ação dos policiais vestidos de preto em atear fogo a tudo, eu fiquei perturbada com isso. Parei de ver o filme e comecei a escrever este texto, justamente para que minha angústia me deixasse pensar em paz para absorver a mensagem de forma a não me envolver emocionalmente.

Em “Fahrenheit 451” o questionamento de que os livros carregam a dualidade inerente ao ser humano é também algo que convida o espectador a pensar sobre seu ego e postura diante dos fatos cotidianos e em coletividade. Em uma das falas do ‘capitão’, ele insinua que o mal para a sociedade advém dos livros, dizendo que eles ditam modas, comportamentos, pensamentos de outrem, projetando os escritores algo acima do bem e do mal, etc... e isso gera desigualdades de valores; será?  Mas que valores em sociedade são colocados em xeque? Na mesma cena o ‘capitão’ diz a  ‘Montag’ que os livros tornam as pessoas infelizes...

Sobre a obra de Aristóteles, o ‘capitão’ segue sua fala: “Qualquer um que o tenha lido acredita que está acima de quem não o leu.  Você vê, não é nada bom, Montag. Todos temos de ser semelhantes. A única maneira de sermos felizes é se todos formos iguais. Por isso temos que queimar os livros, Montag.” A cena mais perturbadora (sim, ainda havia algo mais aterrador para mim além de queimar livros – alusão direta à loucura dominadora do Nazismo recente... ou à Santa Inquisição da Idade Média) foi a dona da casa ela própria atear-se fogo recusando-se a negar sua cultura morrendo junto com seus livros. Também um ato convidativo à reflexão: é possível a negação de valores quando saímos da Caverna (Platão)? É possível regredirmos à barbárie de tempos em tempos para obtenção de poder e controle das massas?

Sim... infelizmente isso ainda é possível. A insensibilidade ainda domina as massas, principalmente os governantes. A esposa de ‘Montag’ que se entope de remédios... fica no ar se ela os tomou em demasia porque queria ‘apagar’ sua realidade ou se ela simplesmente o fez sem querer, pois ela como os demais personagens são mostrados como se estivessem ocos de reações ou sentimentos. A própria esposa fútil de ‘Montag’ agia com uma felicidade plasticamente calculada, onde nem ela sabia o que fazia em relação às coisas; era totalmente dominada pelo quê a TV lhe mostrava, sem chances de pensar. Isso fica visível na sequencia em que ela dialoga com um programa de TV e não conversa diretamente com o marido as questões conjugais, porque ela própria ignora sua essência.

Vem à tona a questão existencial: o Saber liberta ou aprisiona o Ser? A meu ver liberta, e aprisiona a partir do no momento em que se descobre a verdade e não agimos contra o conformismo daquilo que percebemos estar errado... Felizmente ‘Montag’ agiu. Há também uma certa critica na fala do ‘capitão’ quando ele próprio questiona o que motivava os escritores de todas as épocas a escreverem. Que no inicio era apenas vontade de escrever que depois evoluiu para o egocentrismo de dizer ao mundo que suas ideias eram as corretas em comparação às ideias dos pensadores de séculos outros... há algo para se refletir aí também.

Interessante observar quando o protagonista começa a mudar seu ponto de vista, muda também sua interação com o mundo. Uma cena sutil que pode passar despercebida por ser um tanto inverossímil, é quando ‘Montag’ (já após ter iniciado suas leituras), subverte a ordem dos pensamentos quando já não consegue ‘subir’ no corrimão que os bombeiros utilizam para descer. Essa cena encerra muita coisa. Podemos tê-la simbolicamente como o ponto de mutação dele em relação ao status quo.

Minha curiosidade sobre o nome do personagem protagonista revelou-me que ‘Montag’ significa ‘segunda-feira’ na língua alemã, e que sua origem do alto alemão antigo seria ‘Manitag’, literalmente ‘dia da Lua’; a compreensão foi buscar no termo latino ‘dies Lunae’ explicando sua etimologia, que quer dizer ‘dia da (deusa) da Lua’. Na crença romana antiga de onde vem a lenda da deusa da Lua (‘Luna’ ou ‘Selene’), a ela lhe é dedicado este dia da semana e também reverenciada a qualquer segunda-feira. A deusa ‘Selene’ é a guardiã da sabedoria e do poder mágico. Importa saber que nos rituais à deusa da Lua os indivíduos o faziam para alcançar a claridade/ clarividência da consciência dentro de si a fim de darem passagem à Luz, ao conhecimento. Onde as trevas prevalecem dentro dos indivíduos e/ou nações, a deusa Luna discretamente os convida à lembrança e um retorno à razão e ao equilíbrio... interessante, não?

Outro simbolismo contido (tentar ao menos perceber...) nas cenas que aparecem as capas dos livros queimando, os nomes de escritores ‘marginais’ e subversivos como: Gean Genet; Aristóteles; Jean-Paul Sartre; Charles Dickens;  Oscar Wilde; Sade etc., agonizando no fogo como se os próprios escritores agonizassem em vida tentando ultrapassar a logica imposta pelo status quo, querendo perpetuar seus pensamentos às próximas gerações para que (talvez) os mesmos erros atrozes de matança, humilhação, intolerância, subjugação, etc., não fossem cometidos em sociedade.

Outra crítica aberta Truffaut a faz sem nenhum escopo de especulação: a perseguição de ‘Montag’ vista pela televisão, (alias por ele mesmo), em que o próprio assiste sua captura... nas falas de seu interlocutor: “o show deve continuar...”, aqui Truffaut adverte que também os telejornais são manipulados para conter apenas a informação que supostamente (...) manterá a população em paz.

Eu realmente chorei copiosamente emocionada ao final de “Fahrenheit 451”; meu coração foi tocado pelos ‘homens-livros’ (a resistência); pessoas LIVRES que de certa forma deram suas vidas para perpetuação da informação contida nos livros, que mantiveram na memória as narrativas destes através da oralidade, amor e respeito pela liberdade de expressão, saber e cultura.

Esses ‘homens’ e ‘mulheres-livros’ refugiam-se na floresta, no mato em contato com a essência da vida onde não são perseguidos pela dita civilização. Fiquei tão feliz ao ver que o livro que ‘Montag’ levaria consigo de agora em diante, era “Histórias de Mistérios e Imaginação”, de Edgar Allan Poe.

Então, não se pode julgar um  livro pela capa... Talvez Truffaut nos convide a reflexão que o ser humano devesse retomar às suas origens em comunhão com a Natureza das coisas. Também nesta cena final se encerra outra simbologia: a de que somos o que lemos e experimentamos no passar de nossas vidas, e desse modo também a produção dos escritores (e eles mesmos) vivem através de suas obras passadas de geração em geração. Talvez por isso os chamem de ‘imortais da literatura’.

“’Eu não farei barulho’, disse Archie. E serei ousadamente franco. Eu não amo o meu pai. Pergunto-me, às vezes, se não o odeio. Eis a minha vergonha, talvez o meu pecado. Pelo menos, se aos olhos de Deus, não a minha culpa. Como eu poderei amá-lo? Ele nunca falou comigo, nunca sorriu para mim. Acho que nunca me tocou. Ele tinha mais medo da morte do que qualquer outra coisa. Ele morreu como pensava que morreria... enquanto as primeiras neves do inverno caíam.” – Robert Louis Stevenson.


Hellen Katiuscia de Sá
Escrito entre 06 à 08 de outubro de 2012.
*Em jejum na penumbra do meu quarto, no silêncio e solidão da madrugada e do dia...

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FAHRENHEIT 451 
Ficha Técnica:
Diretor: François Truffaut
Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring, Jeremy Spencer, Bee Duffell, Ann Bell, Caroline Hunt, Anna Palk, Alex Scott.
Produção: Lewis M. Allen
Roteiro: Jean-Louis Richard, David Rudkin, Helen Scott, François Truffaut
Fotografia: Nicolas Roeg
Trilha Sonora: Bernard Herrmann
Duração: 112 min.
Ano: 1966
País: França / Reino Unido
Gênero: Ficção Científica
Cor: Colorido
Distribuidora: Não definida
Estúdio: Universal / Anglo Enterprises

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

UM PARTO SOFRIDO GERA UM PRÓDIGO FILHO



Um realizador de cinema deve compreender que seu filme será posto à prova desde o inicio da ideia que originou seu roteiro até o momento da montagem final. Esse será o caminho natural e invisível que todo realizador adentra quando escolhe trabalhar com esse tipo de linguagem artística: a cinematográfica. Daí ele saber exatamente o que pretende dizer com seu filme e para quem dizer (para si ou para o publico). As soluções estéticas e tudo mais resultarão dessa primeira resposta individual, e provavelmente também a partir daqui se delineará a autonomia criativa do diretor que aparecerá de um jeito ou de outro como sua assinatura nos próximos trabalhos.

Existem meandros tênues que perpassam todo o processo de realização. Vêm os ‘tratamentos’; a primeira decupagem (a segunda, a terceira, e quantas forem precisas); os demais ‘tratamentos’; a escolha da equipe e das locações; a escolha dos equipamentos que irão convergir na captura das imagens e no enquadramento plástico das mesmas; da estética que o diretor do filme quer alcançar junto à sua equipe; a escolha dos atores; se decide mostrar (ou esconder) a ação ou apenas sugeri-las nas cenas, etc.

Entretanto, essa parte ‘física’ do negocio não é exatamente a que mais importa para o realizador/diretor atentar em demasia, pois são procedimentos padrões que qualquer pessoa com o mínimo de organização e referencias administrativas e com uma equipe (até mediana), pode fazer.

A linguagem secreta do cinema está justamente naquilo que não se estuda para o roteiro que se está sendo feito... e daí se diz ‘secreta’. O cinema é o bebê das linguagens artísticas, por assim dizer, entretanto, é um bebê superdotado, sagaz, imaginativo e hiperativo... e como um bebê que se descobre a si mesmo, ele suga tudo e mescla tudo e experimenta tudo e divide tudo e remexe tudo como uma verdadeira maquina de reciclagem ou como se estivesse brincando com uma massinha de modelar (um de meus passatempos favoritos quando criancinha).

E para que essa transformação alcance o cérebro de seu realizador, este deve aprender a ‘compreender’ essa linguagem secreta educando-se visualmente, espiritualmente, culturalmente, filosoficamente, transcendentalmente, criativamente assistindo filmes de diferentes categorias, abolindo o preconceito de gêneros e temas sem abolir, porém, o senso crítico, e adquire-se isto através de leitura sobre as ferramentas do audiovisual através de livros técnicos, da biografia dos grandes cineastas, do ABC dos primórdios do cinema (truques experimentos de filmagens e montagens de outrora), bem como fazer, filmar, experimentar. Afinar a poderosa lente que dispomos: educar o olhar. Não exatamente os olhos do corpo, e sim os olhos da Alma.

A linguagem do cinema é misteriosa, infinitamente subjetiva. Ela mescla tudo o que já conhecemos (em termos de ferramentas e abordagens artísticas, e vai além: vale-se de todo tipo de suporte e adágios para compor cada silaba que o audiovisual necessita para passar ao espectador suas mensagens). Existem diversas camadas de compreensão e profundidade... algo como as próprias realidades paralelas admitidas pela Física Quântica.

(Seria uma nova forma de comunicação para entes de níveis mentais mais elevados que habitam neste Planeta? Onde as torrentes dialógicas alcançáveis, subjetivas e até inalcançáveis estão dispostas para todo tipo de mente? Onde a compreensão das coisas e da vida dar-se-á através quase que exclusivamente pelo audiovisual? Isso me instiga...).

Um roteiro de cinema é o paradoxo em pessoa: ele é escrito para não ser comunicativo (na integra), é a linguagem artística que mais se aproxima da humana sem retalhos ou cortes: precisamos vê-la e presenciá-la para alcança-la (no mínimo) o que se deseja expressar. São acionados todos os sentidos para que a mensagem seja elegível.

E o que acho mais fantástico é a inversão de realidade quando um filme começa pelo seu embrião: da concepção do roteiro até o filme finalizado, a realidade palpável (física mesma) é transferida para o mundo subjetivo: o realizador e sua equipe por alguns momentos são ‘teletransportados’ para a realidade vital e virtual do filme em concepção, como se estes elementos (nós) fossemos a subjetividade do filme e este a realidade Real em questão (ficou claro?). O infinito que se toca, a serpente que abocanha o próprio rabo: o Uroboros.

Enfim: cruzam-se os universos paralelos nesse ‘criar’ artístico, de modo que nossas mentes se ‘abrem’ para algo superiormente maior... As fases da pré-produção à pós-produção abraçam-se no consciente e inconsciente que norteiam as pessoas que o fazem, a comunhão em prol de algo: abre-se um portal, um elo de ligação com a face imortal que carregamos cada um, entretanto que necessita de um espelho especial para seu refluxo: o cinema.

Eis a linguagem secreta do cinema (apenas a ponta do iceberg, pois ela se manifesta ainda mais em sua integridade quando num Set de filmagem os núcleos são compatíveis com a mente do diretor, e convergem para uma mesma harmonia; acredito ser essa a eterna busca do filme perfeito. Como um surfista persegue a onda perfeita; o diretor almeja uma equipe perfeita que o compreenda na íntegra... claro que isso é difícil – não impossível – e esta particularidade também serve como a busca pela face de Deus dentro de cada um durante a gestação do filme, e será essa face que se mostrará na obra finalizada que o publico contemplará na telona).

Fazer um filme é um exercício mental mais avançado. Como no teatro, onde o ator se exercita para lubrificar sua maquina representativa, sua tela que é seu corpo psicofísico; seus exercícios de treinamento pessoal do ator não são vistos nem sabidos ou compreendidos pela plateia, mas influenciam no alcance e valor de sua atuação, o mesmo se dá com o filme dos diretores que mantem suas mentes e espíritos repletos de movimento (energético) cuja luz refletir-se-á na projeção, essa é a Alma existente nos filmes que ganham vida.


Hellen Katiuscia de Sá
12:19 PM
*Escrito entre: 28/09 e 01/10/12, em jejum na penumbra do meu quarto, às vezes com impressão de uma luz incidental atrás de mim. (especificações: luz suave, porém, intensa que abarca toda sala conferindo alguma presença). 
[corte seco].