O filme é entrecortado por vários acontecimentos, diria melhor:
vários retalhos de momentos variados de vida de pessoas quaisquer. Há, porém,
um elo entre essa balburdia de Babel, que pode dar um sentido ao quebra-cabeça:
um navio transatlântico navega pelo filme inteiro, com seus tripulantes ora
conversando, ora lembrando-se de algo, ora apenas olhando a calmaria ou fúria
do mar. As águas correndo remetem o escorrer do tempo.
A impressão que eu tive do filme com esses recortes e diálogos e
cenas meio ‘desarrumadas’, é que se trata dos pensamentos que escapam das
mentes dos passageiros a bordo do navio. Veio-me a lembrança de outro filme que
se passa em grande parte dentro de uma nau –
‘E La nave Vá’, de Frederico Fellini, um de meus filmes favoritos pela
poesia, fluidez onírica e delicadeza da obra; tive o privilégio de assisti-lo
no cinema quando mocinha, em sessão especial certa vez! – entretanto, o
transatlântico de ‘Socialismo’ deixa escapar cenas e as vozes aleatoriamente,
invadindo imagens referentes a outros personagens e/ou acontecimentos, digamos
assim. Sugerindo que tudo está interligado, pois estamos no mesmo barco,
afinal... sim, os passageiros do transatlântico do filme e quem os acompanha olhando
o filme.
Em alguns momentos identifiquei-me com o garoto que vaga
livremente a bordo do navio, e explora tudo sem qualquer preocupação ou prisão.
Ele também em algumas passagens funciona como elemento de ligação. Aqui igualmente
se registra a pegada inconfundível da Nouvelle
Vague, da qual o próprio Godard foi um dos pais; as características mais
evidentes: a não-linearidade dos acontecimentos; vozes em off; letreiros na
tela preta entrecortando cenas; assuntos políticos inerentes à contemporaneidade.
Outra coisa que incomode talvez o espectador que não tem o olhar
educado para diferentes estéticas e propostas de filmes menos compromissados
com o estilo clássico de montagem e efeito de sonoplastia, por exemplo, pode se
sentir deveras agastado ao assistir ‘Socialismo’. Acredito que Godard joga com
a sonorização do filme para ‘sacudir’ mesmo o espectador na poltrona de
cinema... sugerindo que ele não se acomode, não durma, tenha a experiência
sensitiva não apenas através do olhar sincronizado aos ouvidos, pois na vida as
coisas surgem em velocidades e sintonias
diferentes que necessitam uma percepção bem mais abrangente, e quem está apto a
captar essas nuances dos acontecimentos cotidianos, está mais apto a safar-se
na seleção natural da evolução intelectual e dos sentidos.
Esse
raciocínio pode ser captado com algumas falas em off: “Sabe-se que quando alguém vai para o Sul, a latitude torna-se negativa. E
tudo o que resta é ir ao Norte, querida alma, querida amiga”/ “Estamos
encarando uma espécie de zero. Certa vez encontrei o Nada. E era muito maior do
que alguém possa imaginar”/ “Todo movimento em uma superfície plana que não é
ditado por uma necessidade física, resulta em uma afirmação espacial dele
mesmo, seja ao construir um Império, ou ao se fazer turismo”/ “Qualquer um pode
fazer algo porque Deus não está aqui”.
Outro recurso estético, que também acredito não estar à toa no filme,
traduz-se em partes de imagens tão saturadas e/ou com baixa definição... também
convidando o espectador a (re)educar seu olhar não somente para o filme, como
também para a vida; como se Godard transferisse para a tela de cinema a
impressão de olhar turvo das pessoas que muitas vezes veem algo mas não enxergam
em sua totalidade, parece que a vista está turva diante de acontecimentos do
dia-a-dia. Godard já sem a menor preocupação em agradar a massa, é direto e cru
em suas assertivas: quem alcançar, alcança... quem não conseguiu ou desiste ou
corre atrás para compreender o que seu filme diz. E diz tanta coisa ao mesmo
tempo.
Godard chega ao refinamento da linguagem cinematográfica, dispensa os
simbolismos e associações mais evidentes que o publico já está acostumado e
educado para detectar nos filmes; ele discorre freneticamente nas informações
audiovisuais; querendo retratar o ritmo de nosso tempo pós-contemporâneo
(talvez). Aqui também me vem algo na cabeça que se relaciona com os recortes e
falatórios e imagens no decorrer do filme: que tudo está interligado, porém igualmente
em constante transformação. A vida não é algo fechado, é dinâmica, os rumos
podem ser trasladados a qualquer momento; basta querer ir, arriscar-se... a
maré é avassaladora.
“Abandonar o navio...”. Voltando às minhas impressões sobre o filme de
Godard. Uma de minhas cenas favoritas é a passagem de dois gatinhos miando...
que amor! – Adoro gatos, já tive muitos de estimação! E tenho uma que está
sempre comigo quando eu estou em casa – podemos
pegar esta cena e associar ao dilema da (falta de) comunicação adequada com o
outro... o que eu falo e o que o outro compreende... as deficiências da
linguagem.
Na cena os gatinhos miam entre si parecendo até uma conversação entre
eles, em seguida uma moça aparece vendo essas imagens em seu computador e
repete a onomatopeia ‘miau’ em forte dilema entre o que comumente se encerra
para compreensão desta grafia. Verifica-se que há diferenças daquele som
linguístico felino sintetizado pela gramática humana. O auditivo difere da
palavra escrita e pronunciada... não existe apenas o ‘miau’, há também o
‘ron-ron’, o ‘fru-fru’, o ‘hmm’ como representante fonético do felino para a
língua humana. Desse modo há também as diferentes compreensões de enunciados
quando conversamos com um interlocutor.
A questão é: eu ou você estamos realmente abertos e interessados a
escutar o que o outro tem a nos dizer? Seguindo a mesma cena: a moça diz para
alguém fora de plano que “ ’Miau’ é como os antigos egípcios chamavam seus
gatos”. Entretanto, seu interlocutor nem liga para o que a moça diz e ainda
pede para ela ficar calada... Vivemos numa sociedade de imposições, tirania, dominação,
subjugação do semelhante. Onde quem grita mais, vence e dane-se o modo
particular de cada um em manifestar suas ideias, em manifestar-se como
verdadeiramente é, em manifestar suas vontades. Tudo é tragado pelo
comportamento em serie e de intransigências.
Aí eu volto novamente ao que coloquei
anteriormente [na vida as coisas surgem em
velocidades e sintonias diferentes que necessitam uma percepção bem mais
abrangente]. A linguagem humana é deficiente em seu alcance de transmissão,
quanto de recepção. Precisamos de variados suportes para dizer tudo o que
pensamos ou sentimos. O dialogo e o entendimento é algo comparável ao compasso
de musica: deve ter tempo, ritmo, métrica, harmonia... e tais elementos somente
são alcançados quando se escuta a si e ao outro com igual interesse e atenção.
Na mesma cena segue-se um diálogo entre a moça que fala a palavra
‘miau’ e outro interlocutor, agora uma voz feminina que fala em alemão, em
resposta da moça do ‘miau’ que fala em francês. Em seguida entra uma filmagem
antiga de combate, a narração fala sobre a guerra entre franceses e alemães...
a cena é interrompida por outra em terrível definição de imagem, e há um
dialogo entre um velho e uma mocinha numa festa:
VELHO: “Você sabe o que significa 'kamikaze' em
japonês?”
MOCINHA: “A divindade do vento?”
VELHO: “exato.”
Acho que dentre as várias coisas que o
filme ‘Socialismo’ mostra e refere-se, eu escolhi como tema principal, que
segundo o meu entendimento é a (in)comunicabilidade e dificuldade que os seres
humanos têm de se relacionar com as diferenças: os diversos cacos de imagens e
falas nos remete às simples ações de boa-vontade: olhe e veja; escute e fale;
ame-se e respeite o próximo igualmente. A própria estrutura do filme nos remete
a essa falta de compreensão das coisas, na dificuldade de ver e enxergar de
fato; da dificuldade de ouvir o próximo. A estrutura como o filme se mostra
adere também seu conteúdo à forma; percebi essa aderência de alma e aparência
semelhante ao encontrado no filme POCILGA, de Pier
Paolo Pasolini.
Godard nos convida a simplificação das
coisas, não à compreensão simplória das mesmas, e perambula sobre isso em seu
filme através de diversas maneiras de tocar no assunto da comunicação como
chave-mestra para a Paz no macro e micro mundo das pessoas; o diretor utiliza-se
da História, da Sociologia, da Psicologia, do Existencialismo, da Economia
Mundial, da Antropologia, da Filosofia
para nos dizer isso. Adverte-nos em diversas passagens do filme que o quê
importa é o sujeito e não suas posses e poses. O resgate da valorização da
pessoa e não do objeto que a orna. Há uma fala interessante ao longo do filme
que ilustra isso, e ainda faz um profundo resgate histórico num resumo dos
fatos incrível nesse dialogo breve:
HOMEM UM: “O dinheiro foi inventado para
que as pessoas não tivessem que se olhar nos olhos”.
HOMEM DOIS: “Então, de volta ao Zero,
meu amigo”.
HOMEM UM: “Felizmente, foram os árabes que
o inventaram. Não temos que pagá-los pelo copyright.”
HOMEM DOIS: “Normal: os números
negativos foram inventados na Índia.”
HOMEM UM: “Eles fizeram alguma coisa na
Arábia, antes de chegarem à Itália. Fibonacci foi o primeiro a utilizá-los, quando
os britânicos deixaram Israel... O quê, exatamente, você fez com o dinheiro do
Banco da Palestina?”
O dinheiro – riqueza e poder –
Justamente a mola-mestra do mundo: tanto constrói como destrói, dependendo da
sua aplicabilidade de valores. (...) Um fato interessante que eu notei no filme
de Godard. As cenas de pior definição visual normalmente são as das festas...
será que ele sugere que o velho ‘ Pão e Circo’ distrai a massa dos assuntos
mais sérios como a politica, a economia, a educação, a melhor distribuição per
capita de renda entre os Países? E as águas rolam... com tubarões acuando
cardumes de peixes menores.
Uma sensação boa que o filme de Godard
me deixou, foi por causa de alguns enquadramentos como se a câmera apenas
estivesse observando o cotidiano das pessoas dentro do navio. Em algumas cenas
os indivíduos não representam, apenas são o que são. E o enquadramento da
câmera vem de um ambiente de fora de onde essas pessoas estão. O olhar voyeur do cineasta torna seu filme cheio
de quebra-cabeças algo mais próximo da realidade, pois o dia-dia é também
picotado em menor proporção de informações e pensamentos, mas também nos é
assimilado dessa forma, se formos observar.
Deixei-me conduzir de toda informação possível que consegui apreender do
filme. Fiquei bastante aberta ao mesmo, porém também não o assisti de forma
linear, dei pausa e fui fazer outras coisas, fui assistindo-o aos pedaços... e
isso não faria a menor diferença mesmo! “A mente tira da matéria percepções que
transforma em seu alimento e o devolve em forma de movimento no qual expressa
sua liberdade.”, eis uma das falas mais belas do filme em minha opinião, na voz
do menino que aparece vez por outra sempre livre explorando o espaço do navio,
e que bem no inicio do filme um velho o chama de ‘criança encapetada’ por ele
não seguir as regras de ninguém e ir saciando livremente sua curiosidade de
explorador.
Lá pelas tantas eu já estava curiosa
para saber aonde o transatlântico iria aportar de vez. “As ideias nos separam.
Mas os sonhos nos aproximam...”, outra bela frase dita em ‘Socialismo’.
“Mostrar, antes de tudo. Mostrar o que é possível. Isso é tudo.”
“O quê, por exemplo?”
“Não falar sobre o invisível. Mostrá-lo.”
Não perder-se em elucubrações sobre a vida, e sim vivê-la. Conseguir o
equilíbrio entre conhecimento adquirido nos livros e a praticidade da
convivência coletiva... evitar tornar-se arrogante e apartado da civilização.
Ter bom senso e interatividade com seu semelhante: escutá-lo, compreendê-lo e
fazer-se compreender; pois o conhecimento alarga as percepções e a priori,
deveria libertar o ser das armadilhas sociais. O conhecimento deveria
deixar-nos mais humildes do que arrogantes, (em minha opinião).
“O sonho do Estado é ser sozinho. O sonho do indivíduo é tornar-se dois.”
O tempo é um mistério encerrado através da maquina inventada pelo homem –
o relógio – que ao mesmo instante aprisiona
as horas corridas manifestando a incapacidade do homem em detê-las. O relógio
ergue-se como uma pequena antítese de si mesmo. A negação da existência que
existe através do tempo contado e morto assim que nasce através dos ponteiros.
Nascemos, e a única certeza que sabemos é que iremos prescindir do tempo que se
escorre. Daí muitas passagens da segunda parte do filme de Godard – pois em
minha opinião ‘Socialismo’ tem três momentos – discorre sobre as decisões que cada um toma a
partir do momento que se descobre a si mesmo.
“A liberdade é cara...”
“Que horas são?”
“Nada mais que a hora certa”.
“Quando a lei não é justa, a justiça
passa por cima da lei”.
Entretanto, do pó viemos e ao pó retornaremos. ‘Socialismo’ de Jean-Luc
Godard não é um filme fácil, traz inúmeras possibilidades de compreensão, assim
como a vida nos revela variadas formas de vivê-la. A escolha e conhecimento para
interpretá-la são de cada um.
Katiuscia
de Sá
29 e 30 de outubro de 2012.