*texto
retirado do livro:
TARKOVSKIAEI, Andreaei Arsensevich. ESCULPIR O TEMPO;
[tradução Jefferson Luiz Camargo]. 2- ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998. [pp.
260-275]
A
ideia para O Sacrifício surgiu em mim muito antes que eu
pensasse
em Nostalgia. As primeiras anotações e os primeiros
esboços,
as primeiras linhas frenéticas, datam do tempo
em
que eu ainda morava na União Soviética. O núcleo devia
ser
a história de como o herói, Alexander, iria ser curado
de
uma doença fatal graças a uma noite passada na cama
com
uma feiticeira. Desde aqueles primeiros dias e durante
todo
o tempo em que trabalhei no roteiro, estive preocupado
com
a idéia de equilíbrio, de sacrifício, do ato sacrificial,
com
o yin e o yang da personalidade; essas preocupações
tornaram-se
parte integrante do meu ser, e tudo que vivenciei,
desde
que passei a morar no Ocidente apenas serviu
para
tornar mais intensa essa preocupação. Preciso dizer que
as
minhas crenças básicas não mudaram desde que aqui cheguei;
desenvolveram-se,
aprofundaram-se, tornaram-se mais
sólidas;
ocorreram mudanças de intervalo, de proporção. Assim,
enquanto
evoluía, o projeto de meu filme também foi
mudando
de forma, mas espero que a ideia central tenha
permanecido
intacta.
O
que me impeliu foi o tema da harmonia que nasce apenas
do
sacrifício, da dupla dependência do amor. Não se
trata
de amor mútuo: o que ninguém parece entender é que
o
amor só pode ser unilateral, que não existe outra espécie
de
amor, que, sob qualquer outra forma, não é amor. Se
não
houve entrega total, não é amor. É impotente, e no momento,
é
nada.
Acima
de tudo, estou preocupado com o indivíduo capaz
de
sacrificar a si mesmo e a seu modo de vida — sem se
preocupar
em saber se sacrifício é feito em nome de valores
espirituais,
pelo bem do próximo, para sua própria salvação,
ou
em nome de tudo isso. Tal comportamento exclui,
por
sua própria natureza, todos aqueles interesses egoístas
que
constituem uma base lógica "normal" para a ação; recusa
as
leis de uma visão de mundo materialista. E sempre
absurdo
e pouco prático. E, apesar disso — ou, na verdade,
justamente
por isso — a pessoa que age desse modo realiza
mudanças
fundamentais nas vidas das pessoas e no curso da história.
O
espaço que ela habita torna-se um ponto de
contraste
característico e raro em relação aos conceitos utilitários
da
nossa experiência, uma área onde a realidade —
eu
diria — está presente de forma extremamente forte.
Pouco
a pouco, essa consciência levou-me a pôr em prática
meu
desejo de realizar um longa-metragem sobre um
homem
cuja dependência em relação a outros leva-o à independência e para
quem
o amor é simultaneamente a suprema servidão e a máxima liberdade.
E,
assim, quanto mais claramente eu distinguia a marca do materialismo na face
do
nosso planeta (independentemente de estar olhando para o
Ocidente
ou para o Oriente), quanto mais me deparava com
pessoas
infelizes e via as vítimas de psicoses, sintomas de
uma
incapacidade ou relutância em perceber por que a vida
perdera
toda a alegria e todo o valor, por que ela se tornara
opressiva,
mais eu me sentia comprometido com esse
filme,
como se ele fosse a coisa mais importante da minha
vida.
Parece-me que, atualmente, o indivíduo se encontra
em
uma encruzilhada, confrontado com a opção de uma existência
fundamentada
em um consumismo cego, sujeito ao
avanço
inexorável da nova tecnologia e à infinita multiplicação
dos
bens materiais, ou, então, de buscar um caminho
que
conduza à responsabilidade espiritual, um caminho
que,
enfim, pode significar não apenas sua salvação pessoal,
mas
também a salvação da sociedade como um todo; em outras
palavras,
voltar-se para Deus. Esse é um problema que
ele
tem que resolver sozinho, pois só a ele cabe descobrir
uma
vida espiritual equilibrada para si mesmo. Ao resolvê-lo,
ele
pode se aproximar do estado em que pode ser responsável
pela
sociedade. Este é o passo que se transforma
num
sacrifício, no sentido cristão de auto-sacrifício.
Mais
uma vez somos lembrados da máxima segundo a
qual
nossa vida nesta terra foi criada para a felicidade, e que
nada
é mais importante para o homem. E embora isso só
pudesse
ser verdade caso se alterasse o significado da palavra
felicidade
— o que 6 impossível —, tanto no Ocidente
quanto
no Oriente (não estou me referindo ao Extremo
Oriente)
uma voz dissidente não seria levada a sério pela
maioria
materialista.
Pressuponho
que o homem moderno, em sua maioria, não
está
preparado para negar a si mesmo e a seus interesses
pelo
bem de outras pessoas ou em nome do que é Maior,
do
que é Supremo; com maior prontidão, trocaria sua própria
vida
pela existência de um robô. Reconheço que a idéia
de
sacrifício, o ideal cristão do amor ao próximo, não desfruta
de
popularidade — e que ninguém pede o autosacrifício.
Este
é encarado como idealista e pouco prático.
Porém,
os resultados do nosso modo de vida,
do
nosso comportamento, são bastante
evidentes:
a
erosão da individualidade pelo egoísmo manifesto,
a
degeneração dos laços humanos em relacionamentos
insignificantes
entre grupos,
e,
o que é mais alarmante, a perda de qualquer possibilidade
de
retorno àquela forma de vida espiritual mais elevada
que
é a única digna da humanidade e que representa a única
esperança
de salvação do homem. Um exemplo irá ilustrar
o
que quero dizer com a importância primordial
atribuída
aos interesses materiais. A fome física pode ser aliviada
de
maneira bem simples através do dinheiro; atualmente,
tendemos
a utilizar a mesma fórmula ingenuamente
marxista:
"dinheiro = bens" em nossos esforços para fugir
do
sofrimento interior. Quando sentimos inexplicáveis sintomas
de
ansiedade, depressão ou desespero, prontamente
nos
entregamos aos cuidados de um psiquiatra ou, melhor
ainda,
de um sexólogo, que assumiram o lugar do confessor
e que, achamos, acalmam nossas mentes c
restituem nas
à
normalidade. Tranqüilizados, pagamo-lhes ao preço
do
dia. Ou, se sentimos necessidade de amor, dirigimo-nos
a
um bordel e novamente pagamos em dinheiro — não que
precise,
necessariamente, ser um bordel. E, tudo isso, apesar
de
sabermos perfeitamente bem que dinheiro algum pode
comprar
amor ou paz de espírito.
0
Sacrifício é
uma parábola. Os acontecimentos significativos
que
contém podem ser interpretados de várias formas.
A
primeira versão era intitulada A Feiticeira, e narrava a his-
tória
da cura espantosa do protagonista, que sofria de câncer.
Como
o médico da família lhe tivesse comunicado que
seus
dias estavam contados, Alexander, ao atender, um dia,
a
porta, deparou-se com um adivinho — o precursor de Otto
na
versão definitiva — que deu a Alexander uma instrução
estranha,
quase absurda: que ele fosse até certa mulher, tida
como
feiticeira, e passasse a noite com ela. O doente obedeceu,
por
ser sua única saída, e, pela graça de Deus, foi
curado;
a cura foi constatada pelo maravilhado doutor. E,
então,
numa noite triste e tempestuosa, a feiticeira apareceu
na
casa de Alexander, que, a seu convite, deixou ale-
gremente
sua esplêndida mansão e sua vida respeitável e
partiu
com ela, levando apenas um velho sobretudo às costas.
Em
termos gerais, o filme devia ser não apenas uma
parábola
sobre o sacrifício, mas também uma história de como
um
indivíduo é salvo. E o que espero é que Alexander
—
como o herói do filme, finalmente realizado na Suécia
em
1985 — tenha se curado em um sentido mais significativo:
não
se tratava apenas de ser curado de uma doença física
(e,
além do mais, fatal); tratava-se também de regeneração
espiritual,
expressada na figura de uma mulher.
Curiosamente,
enquanto as imagens do filme estavam sendo
concebidas,
e, na verdade, durante todo o tempo em que
a
primeira versão do roteiro estava sendo escrita, independentemente
do
que ocorria em minha vida naquele período, os
personagens
começaram a sobressair de modo cada vez
mais
claro,
e a ação a se tornar progressivamente mais
estruturada
e específica. Era quase que como um processo
independente
invadindo minha vida. Além disso, enquanto ainda fazia Nostalgia,
não
pude fugir à sensação de que o filme estava interferindo em minha vida.
No
roteiro de Nostalgia, Gorchakov tinha ido para a Itália apenas por uma
breve
estada, mas ficou doente e morreu por lá. Em outras
palavras,
ele falhou em seu propósito de voltar à Rússia não
por
vontade própria, mas por uma imposição do destino.
Eu
também não imaginava que, depois de terminar Nostalgia,
eu
permaneceria na Itália: mas, assim como Gorchakov,
estou
sujeito a uma Vontade Superior. Um outro fato
lamentável
veio acentuar esses pensamentos: a morte de Anatoli
Solonitsyn,
que havia desempenhado o papel principal
em
todos os meus filmes anteriores e que, eu supunha,
desempenharia
o papel de Gorchakov em Nostalgia, e o de
Alexander
em 0 Sacrifício. Morreu da doença de que Alexander
foi
curado e que, um ano depois, iria me afligir.
Não
sei o que isso significa. Apenas sei que é muito assustador,
e
não tenho nenhuma dúvida de que a poesia do
filme vai se tornar uma realidade
específica, de que a verdade
à
qual ele se refere irá se materializar, far-se-á conhe-
cida
por si mesma, e — quer eu goste ou não — irá afetar
minha
vida. Uma pessoa não pode permanecer passiva depois
de
ter se apoderado de verdades de tal ordem, pois elas
chegam
até nós sem que o desejemos, e subvertem todas as
idéias
anteriores em relação ao significado do mundo. Em
um
sentido muito real, a pessoa se divide, consciente de que
é
responsável por outros; é um instrumento, um meio, obrigado
a
viver e a agir para o bem do próximo.
Assim,
Alexander Puchkin considerava que todo poeta,
todo
verdadeiro artista (e eu sempre me considerei mais poeta
que
cineasta) — independentemente de querê-lo ou não —
é
um profeta. Puchkin encarava a capacidade de olhar através
do
tempo e predizer o futuro como um dom terrível, e o papel
que
lhe coube causou-lhe indizível tormento. Ele tinha
uma
posição supersticiosa em relação a sinais e augúrios.
Basta
que recordemos como, quando estava correndo de
Pskov
para Petersburgo no momento do Levante Decembrista,
o
poeta tomou o caminho de volta porque uma lebre
havia
cruzado seu caminho; aceitou a crença popular de que
isso
era um presságio. Em um dos seus poemas, escreveu
sobre
a tortura que sofreu por ser consciente do seu dom
da
presciência, e da responsabilidade de ter sido escolhido
para
poeta e profeta. Eu me esquecera das suas palavras,
mas
o poema voltou-me com nova significação, quase que
como
uma revelação. Sinto que a pena que escreveu esses
versos,
em 1826, não era empunhada somente por Alexander
Puchkin:
“Cansado
da fome espiritual
Em
meio a um deserto triste meu caminho fiz,
E
um anjo de seis asas veio a mim
Num
lugar onde havia uma encruzilhada.
Com
dedos leves como o sono
Tocou
as pupilas de meus olhos
E
minhas proféticas pupilas abriu
Como
olhos de águia assustada.
Quando
seus dedos tocaram meus ouvidos,
Estes
se encheram de rugidos e clangores
E
ouvi o tremor do céu
E
o vôo do anjo da montanha
E
animais marinhos nas profundezas
E
crescer a videira do vale.
E,
então, pressionou-me a boca
E
arrancou-me a língua pecador a,
E
toda a sua malícia e palavras vãs,
E
tomando a língua de uma sábia serpente
Introduziu-a
em minha boca gelada
Com
sua mão direita encarnada.
Então,
com sua espada, abriu meu peito
E
arrancou-me o coração fremente,
E
no vazio de meu peito colocou
Um
pedaço de carvão em chamas.
Fiquei como um cadáver, deitado no
deserto,
E
ouvi a voz de Deus clamar:
"Levanta,
profeta, e vê e ouve,
Sê
portador da minha vontade —
Atravessa
terras e mares
E
incendeia o coração dos homens com o verbo."
O
Sacrifício tem,
fundamentalmente, a mesma índole que
meus
filmes anteriores, mas é diferente no sentido de que
coloquei
a ênfase poética deliberadamente sobre o desenvolvimento
dramático.
Em certo sentido, meus filmes mais recentes
têm
sido impressionistas quanto à estrutura: os
episódios
— com raras exceções — foram tirados da vida
cotidiana
e, por isso, vão ao encontro dos espectadores em
sua
totalidade. Ao trabalhar em meu mais recente filme, não
procurei
simplesmente desenvolver os episódios à luz da minha
própria
vivência e das regras da estrutura dramática,
mas
também procurei dar ao filme a forma de um todo poético
no
qual todos os episódios estivessem ligados harmoniosamente
—
algo que me preocupara bem menos em filmes
anteriores.
Como resultado, a estrutura geral de 0 Sacrifício
tornou-se
mais complexa e tomou a forma de uma parábola
poética.
Em Nostalgia praticamente não há desenvolvimento
dramático,
exceto a briga com Eugenia, a auto-imolação
de
Domenico e as três tentativas de Gorchakov para atravessar
o
poço com a vela; em 0 Sacrifício, ao contrário, o
conflito
entre os personagens atinge um ponto em que eles
precisam
agir. Tanto Domenico quanto Alexander estão
prontos
para a ação, e a sua disposição de agir nasce do pressentimento
de
transformação iminente. Ambos trazem a
marca
do sacrifício, e cada um faz de si mesmo uma oblação.
A
diferença é que o ato de Domenico não produz resultados
palpáveis.
Alexander,
um ator que abandonou os palcos, está perpetuamente
esmagado
pela depressão. Tudo enche-o de cansaço:
as
pressões da mudança, a discórdia na família, e sua
percepção
instintiva da ameaça representada pelo progresso
inexorável
da tecnologia. Ele chegou ao ponto de odiar
o
vazio do discurso humano, do qual procura fugir adotando
um
silêncio no qual espera encontrar a paz. Alexander
oferece
ao público a possibilidade de participar do seu ato
de
sacrifício e de ser influenciado por seus resultados. (Não,
espero,
no sentido daquela "participação do público", tão
comum
entre diretores tanto na União Soviética quanto nos
Estados
Unidos — e, por conseqüência, na Europa também
—
e que se tornou uma das duas principais tendências do
cinema
atual — sendo a outra denominada "cinema poético",
onde
tudo é deliberadamente incompreensível, e o diretor
precisa
elaborar explicações para o que fez.)
A
metáfora do filme é coerente com a ação e não precisa
de
esclarecimento. Eu sabia que o filme estaria aberto a várias
interpretações,
mas evitei deliberadamente indicar conclusões
específicas,
pois achei que o público deveria
encontrá-las
de modo independente. Na verdade, era minha
intenção provocar reações diferentes.
Naturalmente, tenho
minhas
próprias opiniões acerca do filme, e acho que
a
pessoa que for vê-lo estará capacitada para interpretar os
acontecimentos
que ele retrata e decidir-se quanto às várias
seqüências
que o compõem e quanto às suas contradições.
Alexander
volta-se para Deus em oração. Em seguida, resolve
romper
com sua vida, tal como até então a vivera; destrói
todas
as ligações com o passado, não deixando nenhuma
possibilidade
de volta, destrói sua casa, separa-se do filho
a
quem ama acima de tudo. E então, cai em silêncio, num
comentário
final sobre a desvalorização das palavras no mundo
moderno.
Pode ser que pessoas religiosas vejam nas ações
que
se seguem à oração a resposta de Deus à pergunta do
homem
"O que poderia ser feito para evitar um desastre
nuclear?"
— isto é, recorrer a Deus. Pode ser que quem
tenha
um elevado senso do sobrenatural interprete o encontro
com
a feiticeira, Maria, como a cena central que explica tudo
o
que ocorre posteriormente. Sem dúvida, haverá outros
para
quem todos os acontecimentos do filme não
representarão
mais que os frutos de uma imaginação doentia,
já
que, na realidade, não está ocorrendo nenhuma guerra
nuclear.
Nenhuma
dessas reações tem qualquer relação com a realidade
apresentada
no filme. A primeira e a última cena —
o
ato de regar a árvore infrutífera, que, para mim, é um
símbolo
de fé — são os pontos altos entre acontecimentos
que
se desenrolam com intensidade cada vez maior. Ao final
do
filme, Alexander não apenas prova que está certo e
demonstra
que está preparado para se elevar extraordinariamente,
mas
também o médico, que, de início, surge como
um
personagem simplista, cheio de saúde e inteiramente
dedicado
à família de Alexander, transforma-se de tal forma
que
é capaz de sentir e compreender a atmosfera venenosa
que
domina a família, e o seu efeito letal. Ele se mostra
capaz
não apenas de expressar uma opinião própria, mas
também
de a romper com o que agora considera desprezível,
e
emigrar para a Austrália.
Em
conseqüência do que ocorre, desenvolve-se uma nova
intimidade
entre Adelaide, a esposa excêntrica de Alexander,
e
a criada, Júlia; um relacionamento humano desse
tipo
é algo completamente novo para Adelaide. Durante quase
todo
o filme, sua função é invariavelmente trágica: ela
esposa
de Alexander. sufoca tudo que se lhe apresente com a menor
aspiração
à individualidade, à afirmação da personalidade; esmaga a tudo e
a
todos, inclusive o marido — sem querer agir dessa forma por um instante sequer.
Ela
é quase incapaz de refletir.
Sofre
em razão da sua própria falta de espiritualidade,
mas
ao mesmo tempo, é esse sofrimento que lhe confere
o
poder destrutivo, tão incontrolável em seus efeitos quanto
uma
explosão nuclear. Ela é uma das causas da tragédia
de
Alexander. O seu interesse pelas outras pessoas está em
proporção
inversa aos seus instintos agressivos, à sua paixão
pela
auto-afirmação. Sua capacidade de apreender a verdade
é
limitada demais para lhe permitir entender um outro
mundo, o mundo do próximo. Além disso,
mesmo que pu-
desse
perceber esse mundo, ela não teria capacidade ou disposição
para
entrar nele.
Maria
é a antítese de Adelaide: modesta, tímida, permanentemente
insegura.
No início do filme, algo semelhante à amizade seria
impensável
entre ela e o dono da casa; as diferenças
que
os separam são muito grandes.
Entretanto,
numa determinada noite, eles se encontram, e essa noite é
o
momento decisivo na vida de Alexander. Diante da catástrofe
iminente,
ele percebe o amor dessa mulher simples como
uma
dádiva divina, como uma justificação de toda a sua
vida.
O milagre que surpreende Alexander transfigura-o.
Não
foi nada fácil encontrar protagonistas para os oito papéis,
mas
acho que cada membro do elenco final está perfeitamente
identificado
com seu personagem e suas ações.
Não
tivemos problemas técnicos ou de qualquer outro tipo
durante
a filmagem, até um momento, perto do final,
quando
todos os nossos esforços pareciam prestes a resultar
em
nada. De repente, na cena em que Alexander põe fogo
à
casa — uma tomada única com seis minutos e meio de
duração
— a câmera quebrou. Só fomos perceber isso quando
a
construção já estava totalmente em chamas, ardendo
até
o fim diante dos nossos olhos. Não pudemos apagar o
fogo,
nem pudemos fazer uma única tomada; quatro meses
de
trabalho árduo e dispendioso por nada.
Então,
numa questão de dias, construiu-se uma nova casa,
idêntica
à primeira. Parecia um milagre, e isso prova
o
que as pessoas são capazes de fazer quando movidas pela
convicção
— e não somente as pessoas, mas os próprios
produtores,
os super-homens.
Ao
filmarmos essa cena pela segunda vez ficamos muito
apreensivos,
até que ambas as câmeras foram desligadas —
uma
pelo assistente de câmera, a outra pelo profundamente
ansioso
Sven Nikvist, aquele brilhante mestre da iluminação.
Então,
relaxamos; quase todos nós chorávamos como
crianças,
e, quando nos abraçamos, percebi como era íntimo
e
indissolúvel o laço que unia nossa equipe.
Talvez
outras cenas — as sequências de sonho ou as três
cenas
da árvore estéril — sejam mais significativas a partir
de
determinado ponto de vista psicológico do que aquela em
que
Alexander incendeia a casa no sombrio cumprimento
da
sua promessa. Mas, desde o início, eu estava determinado
a
concentrar os sentimentos do espectador no comportamento,
à
primeira vista inteiramente absurdo, de alguém
que
considera indigno — e, portanto, realmente pecaminoso
—
tudo o que não seja uma necessidade vital.
Eu
queria que aqueles que assistissem ao filme fossem diretamente
afetados
pela situação de Alexander, que sentissem
sua
nova vida e o tempo distorcido da sua percepção.
Talvez
seja por isso que a cena do incêndio dure pelo menos
seis
minutos completos; não poderia ter sido de outra
forma.
"No
início era o Verbo, mas você está silencioso como
um
salmão mudo", diz Alexander ao filho no começo do
filme.
O garoto está se recuperando de uma operação de garganta
e está proibido de falar. Ouve em
silêncio enquanto
o
pai conta-lhe a história da árvore estéril. Mais tarde, horrorizado
com
as notícias de desastre iminente, o próprio Alexander
faz
um voto de silêncio: "... emudecerei, nunca mais
direi
nenhuma palavra a ninguém, renunciarei a todos os
laços
que me ligam à minha vida. Senhor, ajudai-me a cumprir
esta
promessa."
Deus
atende à prece de Alexander, e as conseqüências são
simultaneamente
terríveis e agradáveis. Por um lado, o resultado
prático
é que Alexander rompe irrevogavelmente com
o
mundo e suas leis, leis que até então aceitara como suas.
Ao
agir assim, não só perde sua família mas também —
e,
para os que o rodeiam, esta é a mais assustadora de todas
as
coisas — coloca-se ao largo de todas as normas aceitas.
E,
contudo, é exatamente por isso que encaro Alexander como
um
homem escolhido por Deus. Ele é capaz de pressentir
o
perigo, a força destrutiva que impele o mecanismo da
sociedade
moderna rumo ao abismo. E deve-se tirar a máscara
para
que a humanidade seja salva.
Até
certo ponto, os outros participantes também podem
ser
encarados como escolhidos e chamados por Deus. Otto,
com
seu dom de prognosticar, é um colecionador, como diz,
de
acontecimentos inexplicáveis e misteriosos. Ninguém conhece
seu
passado ou sabe como e quando chegou na aldeia
onde
acontecem tantas coisas estranhas.
Para
o filhinho de Alexander, assim como para a feiticeira,
Maria,
o mundo está cheio de prodígios impenetráveis,
pois
ambos se movem num universo de imaginação, não de
"realidade".
Contrariamente aos empiristas e aos pragmatistas,
não
acreditam somente no que podem tocar, mas, antes,
percebem
a verdade com o olho da mente. Nada do que
fazem
conforma-se aos critérios "normais" de comportamento.
São
possuídos pelo dom que era conhecido na antiga
Rússia
como a marca do "tolo sagrado", aquele peregrino
ou
mendigo andrajoso cuja simples presença afetava pessoas
que
levavam vidas "normais", e cujos presságios e autonegação
estavam
sempre em contradição com as idéias e regras
estabelecidas
do mundo como um todo.
Atualmente,
os membros da sociedade civilizada, a grande
maioria
sem fé, adotam uma perspectiva completamente positivista,
mas
mesmo os positivistas não conseguem perceber o absurdo da tese
marxista
de que o Universo é eterno ao passo que a Terra é simplesmente
fortuita.
O homem contemporâneo é incapaz de ansiar pelo inesperado,
por
acontecimentos anômalos que não correspondem à lógica "normal";
não
está preparado nem para admitir a idéia de fenômenos não programados,
quanto
mais para acreditar em seu significado sobrenatural.
O
vazio espiritual resultante deveria ser
suficiente para fazê-lo
parar
e pensar. Em primeiro lugar, porém, ele
tem de entender que o
caminho
da sua vida não é julgado por padrões
humanos,
mas está nas mãos do Criador, em cujo arbítrio deve confiar.
Uma
das maiores tragédias do mundo moderno é o fato de que os problemas
morais
e os inter-relacionamentos éticos estão fora de moda; foram colocados
em
posição secundária e despertam pouca atenção. Muitos produtores fogem
dos
filmes de autor porque encaram o cinema não como arte,
mas
como um meio de fazer dinheiro; a tira de celuloide
transforma-se
em mercadoria.
Nesse sentido, 0 Sacrifício é,
entre outras coisas, um repúdio
do
cinema comercial. Meu filme não pretende sustentar
ou
refutar idéias específicas ou defender este ou aquele
modo
de vida. O que eu quis foi propor questões e demonstrar
problemas
que vão diretamente ao núcleo das nossas
vidas
e, desse modo, levar o. espectador de volta às fontes
dormentes
e ressequidas da nossa existência. Figuras, imagens
visuais,
estão muito mais capacitadas para realizar essa
finalidade
do que quaisquer palavras, particularmente
hoje,
quando o mundo perdeu todo o mistério e magia, e
falar
tornou-se mero palavrório — vazio de significado, como
observa
Alexander. Estamos sendo sufocados por uma
avalanche
de informações, contudo, ao mesmo tempo, nossos
sentimentos
permanecem intocados pelas mensagens de
suprema
importância que poderiam mudar nossas vidas.
Em
nosso mundo, há uma divisão entre o bem e o mal.
entre
a espiritualidade e o pragmatismo. Nosso mundo humano
é
construído, modelado, de acordo com leis materiais,
pois
o homem atribuiu à sua sociedade as formas da maté-
ria
morta e assumiu suas leis para si próprio. Por isso, ele
não
acredita no espírito e repudia Deus. Vive apenas de pão.
Gomo
pode ver o Espírito, o Milagre, Deus, se essas entidades
não
cabem na estrutura, se são supérfluas a partir de
seu
ponto de vista? E, contudo, ocorrem fatos miraculosos
mesmo
no domínio do empírico — na física. E, como sabemos,
a
grande maioria dos físicos contemporâneos eminentes,
por
alguma razão, realmente acreditam em Deus.
Certa vez, conversei sobre esse assunto
com o falecido físico
soviético
Lev Landau. O cenário foi urna praia pedregosa
na
Criméia. "O que é que o senhor acha", perguntei, "Deus existe
ou
não?'' Seguiu-se uma pausa de mais ou menos três minutos.
Então,
ele me olhou com ar de desamparo.
"Creio
que sim." Naquela época, eu era apenas um rapaz
queimado
de sol, completamente desconhecido, filho do célebre poeta Arseni
Tarkovski:
um joão-ninguém, apenas um filho. Foi a
primeira
e a última vez que vi Eandau, um encontro único,
casual;
daí, tal sinceridade da parte do vencedor soviético
do
Prêmio Nobel.
Será
que o homem tem alguma esperança de sobrevivência
diante
dos claros sinais de silêncio apocalíptico iminente?
Talvez
uma resposta para essa pergunta deva ser
encontrada
na lenda da árvore ressequida, desprovida da
água
da vida, na qual baseei esse filme que tem tamanha
importância
em minha biografia artística: o Monge, passo
após
passo e balde após balde, sobe a colina para regar a
árvore
seca, acreditando implicitamente que seu ato era necessário
e
em nenhum momento duvidando da sua crença
no
poder milagroso da sua fé em Deus. Viveu para assistir
ao
Milagre: certa manhã, a árvore explode em vida, os ramos
cobertos
de folhas novas. E esse "milagre", sem dúvida,
nada
mais é que a verdade.