quarta-feira, 16 de julho de 2014

Drawing Restraint 9


Duas horas e vinte e quatro minutos é a duração do ‘filme’ escrito e dirigido por Matthew Barney. Em principio, como já era de se esperar de um audiovisual assinado por ele, as imagens contemplativas, serenas e lentas transferem ao espectador um estado de relaxamento e meditação – isto é, para quem já está acostumado e educado a apreciar filmes de arte cujo tempo e temporalidade não estão nem aí para a velocidade pós-moderna.


“Drawing Restraint 9” (2005) requer paciência... muita paciência e um pouco de compreensão dos rituais religiosos e sociais japoneses. Mas não se engane – detrás das imagens tranquilas e lindamente enquadradas mostrando todo um rito delicado e cotidiano que o povo nipônico detém em detalhes sobre as mínimas atividades (como a cerimônia do chá), bem como detrás das imagens bucólicas; da beleza natural; de paisagens amenas, esconde-se algo insólito e severamente forte.


O coito entre os “noivos” (Matthew Barney e Björk, sua esposa na vida real neste período) e o amor deles retratados de modo comparativo a uma difícil metamorfose e superação de barreiras para os seres mitológicos em ascensão, é traduzido por Barney de forma visceral (!) – as cenas mais lindas e também mais perturbadoras de todo o filme. Elas vêm acompanhadas de uma melodia tradicional japonesa extremamente dramática e expressiva, que eleva a agonia do espectador em 100% mediante as imagens. Chega ao ponto de massacrar a vista e embrulhar o estomago pelo coito dos noivos imersos de baixo de um caudaloso rio de vaselina. Comem-se (no sentido lato da palavra), simbolizando uma cumplicidade eterna dos amantes, e também o ritual de preparação das carnes marinhas após o abate.


Tudo trágico e avassalador. O avesso dos gestos contidos e delicados, retratados minuciosamente em todo o filme através do comportamento, rigidez e disciplina dos orientais. Se no amor, os sentimentos escapam a todo critério de ponderação, a cena do coito entre os noivos é algo realmente belo e ao mesmo tempo (incrivelmente) assustador e sobrenatural, tal como as manifestações mitológicas do povo japonês. “Drawing Restraint 9” de Matthew Barney incorpora alguns aspectos icônicos e simbólicos desses mitos, apresentando uma releitura visual dos mesmos. Saber sobre alguns deles pode facilitar na leitura e compreensão da obra.


Em todo momento há a simbiose entre o passado lendário e o presente tecnológico que faz girar a economia japonesa de exportação da pesca industrial da carne de baleia. A lenda da criação do mundo (conforme o folclore nipônico) acompanha o inconsciente de tudo o que acontece no “presente” retratado neste audiovisual de Barney. Identifica-se “Amenonuhoko” – lança encantada cravejada de joias do casal de deuses (os primeiros “Kami”, os principais) que criaram as ilhas japonesas; as formas animísticas dos deuses válidas no Xintoísmo, revelada mais tarde nos noivos durante seu primeiro coito, onde o ato em si os transforma aos poucos até a aparição da real condição de seus corpos – são alguns exemplos.


O elemento Água, (onde tudo começou conforme  criação do mundo pela mitologia nipônica) manipulada nas mãos dos “Kami” principais, através de suas lanças encantadas – podemos identificar essa simbologia através da transformação liquida para gelatinosa da enorme quantidade de vaselina armazenada no grande recipiente do navio (que podemos inferir também à transformação emocional do “casal”, bem como sua transformação física mais adiante); e também na cena das crianças preparando pequenas porções de camarão com uma espécie de patê – essas crianças facilmente podem ser identificadas como os filhos – pequenas divindades que nasceram quando os dois “Kami” principais tiveram seu primeiro contato com as águas terrestre – e também nos remete aos rituais de agradecimento pela boa pesca.


Para Matthew Barney o que importa mesmo em sua obra de audiovisual, é a utilização deste suporte artístico para valer-se como canal expressivo, portanto, “Drawing Restraint 9” não é um filme filme, como compreendemos ser os filmes (com roteiro, personagens, Mise-en-scène, etc.). Barney é um artista plástico que usa os recursos do audiovisual para dar vida ao componente artístico que ele quer configurar. “Drawing Restraint 9” é uma obra de arte que faz parte de uma peça maior. Um projeto intitulado do mesmo nome, porém, composto de 19 partes enumeradas em diferentes suportes (desenho, escultura, música, instalações e vídeo-arte), que Matthew Barney idealizou quando ainda era estudante na Universidade de Yale. Devido a isto, “Drawing Restraint 9” é apenas uma manifestação artística dessa série. Barney utiliza o suporte do audiovisual para convidar o espectador a ter uma experiência plástica sensória profunda através das imagens em movimento que o audiovisual pode proporcionar.



Hellen Katiuscia de Sá –  16/julho/2014.

sábado, 3 de maio de 2014

SÁBADO DE ALELUIA _curta de bolso

Fiz aproveitando a luz que estava tão bonita nesta manhã, quando filmei... e quando se mora num casarão de mais de cem anos, tudo é inspirador. Este curta de bolso é mais um exercício do olhar, uma brincadeirinha séria.


EIKA KATAPPA – Werner Schroeter/1969.


A dor da morte... do esquecimento... da saudade. O cordeiro, o anjo, e a Virgem. O anjo mata o cordeiro. A Virgem beija o cordeiro. O Cordeiro sai andando feito homem e recria sua vida. As ressignificações dialéticas nas passagens de tempo e ritos. O homem ressuscitado. Encenações entrecortadas de lendas alemãs e também religiosas no subconsciente das imagens. A dramatização da voz suavizada por encenações made in cinema mudo. A sociedade é um enorme teatro de arena, acolhedora de representações significativas das nossas vidas. Em algumas situações percebe-se a esmagadora aflição que permeia o ser humano pelo ato de “estar no mundo”, como algo desesperador. O esplendor das cenas como murmúrios de todas as paixões, onde tudo cabe, menos a omissão.


Um dos melhores e mais profundo expoentes da Arte pela Arte do Novo Cinema Alemão, EIKA TATAPPA  é uma grande celebração e contentamento em prol do estado (e ato) de “estar vivo” com toda sua profundidade, vicissitudes, asperezas e leveza. Uma atmosfera musical pontuada por retalhos de ações ao estilo de uma Nouvelle Vague. Neste caso, o filme transborda sentimentos pela musica, através da musica... pela imagem, através da imagem repleta de idiossincrasias. Uma leitura audiovisual da forma em conformidade de uma câmera cumplice dos atos executados em cena. Acontece a exaltação do ator. Magdalena Montezuma se sobressai em suas atuações, com bastante expressividade e visível trabalho de interpretação e preparação corporal. A então jovem atriz faz brilhar todos os sonhos estampados em seu rosto num frescor de esperança que generosamente empresta ao filme de Schroeter – seu amigo e diretor.


A lente objetiva compartilha as tensões e emoções apresentadas pelas personagens. Guerras seculares das civilizações sintetizadas em duetos ou tercetos pelos atores em cena. O sofrimento de maneira simbolizada através dos gestos exagerados em atuações delirantes, porém, contundentes no sentido de fuga da realidade e transbordante de verbalização incontida – o extra cotidiano sob alegoria das formas. O controle social que esmaga o homem, impedindo-o de atingir o patamar de Homo Ludens;  mas Werner Schroeter insiste seguindo com suas personagens ora morrendo, ora ressurgindo a toda força, porque “a vida é muito preciosa, como agora”.


Em alguns pontos a sugestão da religiosidade emerge como sintomas de arrependimentos, ou como fonte histórica de repressão dos sentidos. Há leves referencias ao preconceito de gêneros com cenas de morte e ressurreições incessantes como que indicando a queda do conceito binário existente e ainda arraigado no imaginário da humanidade. Schroeter sugere um renascer constante das ideias sobre a vida, refletindo também ao que se reflete à sua vontade de realizar um novo conceito de cinema. Se a própria vida não é exatamente um roteiro reto a ser seguido. Há planos que são mais ou menos realizáveis... assim é a visão de realidade em EIKA KATAPPA, uma releitura sobre os sentimentos mais secretos dentro da alma humana, cuja a música seria a única capaz de fazer emergir.


Muitas cenas vêm acompanhadas de off’s, numa delas há uma narração em prosa sobre o que a vida pode representar, argumentando que todos os momentos são preciosos, mesmo os sentimentos não compartilhados entre os amigos, os momentos de solidão e melancolia, mesmo às dores e misérias da alma. Toda vida é preciosa.

A representação de uma esperança que morre pelo caminho gritando e se contorcendo de tanto esperar pela iluminação das mentes e dos corações humanos. Uma esperança personificada que agoniza no chão repetidamente sob o off: “A vida é muito preciosa...”. Esta cena é entrecortada por outra – uma dança numa espécie de cabaré, subentendendo-se que a vida está sob nossas vistas e sentidos, cuja Dança nos confirma nossa capacidade de deslocar os acontecimentos conforme o jogo estético (mais ou menos consciente). Então a “esperança” morre, mas a estrada fica, ou seja, sigamos adiante mesmo com o aparente vazio... sigamos!

EIKA KATAPPA parece uma enorme memória coletiva que desencarna e deixa escapar no ar esses momentos sagrados que todos temos ao longo de nossas vidas, porem não damos muita importância ou intensidade adequada, por desatenção talvez, ou por inércia. Há os momentos solenes, os momentos descontraídos, os momentos de sofrimento... mas em todos eles, o filme sugere dançar, celebrar para não permitir que a deformidade da vida afronte o espirito do homem que é livre... porém, se encontra momentaneamente aprisionado e limitado a um corpo físico. O filme brinca com esses aspectos sensíveis escondidos ou calados em nós, por força do cotidiano esmagador e sem poesia. A poesia está em nós e devemos libertá-la... por isso a música, por isso dancemos! Celebremos a vida...


As ressignificações humanas para aquilo que não encontra comunicação objetiva dos pensamentos, dos sentimentos, desejos e vontades. A exaltação da Arte como via  expurgatória das sociedades. A purificação do Ser através do conceito de Beleza transfigurada e renascida pelas mãos humanas num ato de redenção da própria espécie. Um abandonar e reatar contínuos desses estados de espirito ora depressivos, ora de euforia, numa costura da vida coletiva, que Schroeter faz surgir nesses retalhos entrecortados de musicas.


A exaltação da efemeridade e continuidade da vida. O esforço dos versos imagéticos para diluir a dor em alegrias sonoras, significando as passagens de animo e de esforço para vencer os obstáculos psíquicos inerentes apenas à raça humana. Em sociedade a solidariedade é um esforço sobre-humano e o arrependimento a força motriz para algo melhor. O próprio Schroeter aparece dirigindo o ator numa cena, ambos ao lado de vasos. Os vasos que na liturgia Cristã faz alusão ao recipiente do Espirito de Verdade – ou Espirito Santo, em outra ramificação Cristã – e esse vaso é propenso de semeadura feita por cada qual. Nessa cena simbólica e também metalinguística, Werner sintetiza seu filme inovador e diferente, propondo que todos podem melhorar e recomeçar o gesto, recomeçar e reinventar o viver. Desde que com entrega... porque “a vida é muito preciosa, como agora”.






Katiuscia de Sá
Em: 09, 13 e 14 de abril, 2014.
Às: 01:40H.



domingo, 9 de março de 2014

NOSTALGHIA


A água permeando de ponta a ponta em horizontal, ora represada, ora aos pingos, ora em correntezas... indicativo de pureza, renovação, redenção ao passo acelerado no interior da estória. Uma casa com seu interior em ruinas, conotativo à transformação que ocorre nas personagens do poeta russo “Andrei Gorchakov” e de “Domenico”, o louco de Termas Vignoni. Ambos, aliteração do homem em ressureição pela força de confronto de seus próprios fantasmas – o medo da morte e de nunca mais poder resgatar suas memórias de infâncias, da terra natal, etc. Podemos inferir também o medo da perda da luz interior de si mesmo, pelo fato de não saberem mais quem são e porque estão no mundo.

A primeira personagem (o poeta russo) afogada em existencialismos, como se condensando em si toda uma civilização magoada e ainda sobre os efeitos da Guerra Fria, (e mais especificamente à própria sensação do cineasta Tarkovski, na época exilado na Itália após sair de sua terra Natal, a Rússia), cujos confrontos internos com uma nova cultura resumida na figura da atriz italiana “Eugenia” que  acompanha “Gorchakov”, cujos confrontos vão crescendo como o Bolero de Ravel – aos compassos retumbantes, entre ela e o poeta, revelam-se como uma fina costura entre o real e o imaginário – o sonho de “Eugenia” que elimina qualquer possibilidade de encontro entre o poeta e essa nova terra que o acolhe.

Eu mesmo passei por algo semelhante quando me ausentei da minha pátria durante algum tempo: meu encontro com um outro mundo e com uma outra cultura, e o princípio de uma ligação com eles provocaram uma irritação, quase imperceptível, mas incurável — algo como um amor não correspondido, um sintoma da impossibilidade de tentar apreender o que é ilimitado, ou de unir o que não pode ser unido; um indicador de quão limitada, quão restrita, deve ser a nossa experiência na terra; como um sinal das limitações que predeterminam a nossa vida, impostas não por circunstâncias exteriores (com as quais seria fácil lidar!) mas pelos nossos próprios "tabus" interiores... (TARKOVSKI, Andrei. “Esculpir o Tempo”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.243).

E como é de se esperar, o traço característico de Andrei Tarkovski, em misturar sonho e realidade, realidade e sobrenatural, sobrenatural e cinema é demonstrado através da força da Natureza que sempre domesticou o homem e o ajudou a evoluir pensando ingenuamente que era ele o dominador, quando na verdade quem dita as regras é a força da Natureza que precisa sempre ser domada para nos adequarmos aos nossos próprios ideais. Daí a travessia da piscina cujas “águas queimam” ser tão importante, sem que a chama se apague... quando o homem ‘vence’ a Natureza, ele deve morrer para juntar-se a ela. O poeta e o louco... qual a diferença? Enquanto um realiza o ritual, o outro também queima espontaneamente em igual beleza e força comunicativa.


 
“A visão se turva. Minha força... são dois dardos adamantinos ocultos. Confundem-se o que se ouve da casa paterna distante que respira. Os músculos duros e os gânglios enfraquecem... como um ruído de bois no pasto,... e quando a longa noite cai,... duas asas surgem atrás de mim. Na festa, a vela me consome. De madrugada, recolham minha cera derretida,... e nela leiam quem chora, e quem anda soberbo,... como dando a ultima porção de alegria,... morrer levitando e,... por sorte, acender-se... postumamente como uma palavra”. [NOSTALGHIA/1983, de Andrei Tarkovskij]

Como um cinema metafisico desde sua invenção, Tarkovski preocupa-se mais em sensações do que seguir um roteiro cadenciado por inicio/meio/fim. E nisso ele é mestre. Essa impressão mística dos fatos cotidianos é mostrada magnificamente pelas paisagens bucólicas do interior da Itália; pelo poder mágico das paredes de pedra de Termas Vignoni; pela neblina que encobre e revela o ser... tudo vagarosamente como um tempo sem tempo passando, e sim, inventado a bel vontade dos sentimentos, da nostalgia.


 
Desde o inicio, ao assistir ao filme, senti-me como quando criança que me perdia horas dentro de mim mesma absorvendo a realidade de forma puramente sensorial... conferindo a temperatura, as cores do dia, a velocidade do sol em revelar as sombras, no som das aves que se confundiam ao rasgar do vento que passa por nós... Está tudo lá; a magia do tempo capturado na película de Andrei Tarkovski em “Nostalghia”. Cinema desse quilate é impossível passar imune. Graças a Deus existe o poeta do audiovisual que ousa primeiro saborear-se a si mesmo para depois morder um pedaço do mundo com sua própria fome e vontade. Seus filmes autorais são essa fome que o cineasta teve ao longo da vida, enquanto diretor, traduzida em suas obras belíssimas e que nos fazem pensar de maneira outra a vida que nos escapa aos dedos.

É preciso que eu diga que quando vi pela primeira vez todo o material filmado, fiquei surpreso ao encontrar nele um espetáculo de absoluta melancolia. O material era inteiramente homogêneo, tanto no tom quanto no estado mental nele impresso. Não se tratava de uma coisa que eu houvesse decidido realizar; o que era sintomático e singular no fenômeno diante de mim era o fato de que, independentemente das minhas intenções teóricas específicas, a câmera obedeceu, sobretudo ao meu estado interior durante as filmagens... (TARKOVSKI, Andrei. “Esculpir o Tempo”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.244).

De “Nostalghia” ainda pode-se extrair a questão da crença em Deus... quando vemos a peregrinação de “Andrei Gorchakov” pelas igrejas observando os rituais santos – no filme, especificamente a de Ns.ª Sr.ª do Parto... é bastante forte para essa estória do homem que nasceu porém, se perdeu de suas origens. Sua fé naquele momento está posta à prova. Uma busca que nem ele próprio sabe explicar, mas é de alguém perdido à procura de sua própria luz – a da vela que precisa passar sob as águas sem se apagar ao longo da travessia, como uma espécie de provação. Muito bem colocado em ação (simbologia de o homem que passa pela vida e pelas agruras, com a difícil tarefa de jamais se deixar abater e perder-se de si mesmo).
 
Porém a figura do cachorro – que nas pinturas medievais era um simbolismo católico para a ideia da fidelidade de Deus para com seus filhos. O cão está sempre perto tanto do poeta quanto do louco, como que indicando que mesmo estando eles com sua fé abalada, Deus está ali presente, e não faltará no momento de maior iluminação e ascensão interior.




 
A questão da incomunicabilidade humana também é referenciada a todo momento em “Nostalghia”. A alma de alguém sendo desnudada através do cinema. Tristezas e delicadezas em um mesmo fio consumido nas chamas. “Nostalghia” é daqueles filmes que ficam escondidos em algum lugar em nós e permanece, misturando-se às nossas próprias lembranças.

É belíssimo!



Katiuscia de Sá
09 de Março de 2014, às 00:15h

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ORPHÉE, de Jean Cocteau

[Meu primeiro texto sobre minhas impressões acerca da Sétima Arte, inteiramente motivado por sentimentos. Eu que sempre escrevo críticas sobre a alcunha canhestra da Razão; apresento-lhes este, que foi vindo à medida (e simultaneamente) em que eu assistia o filme de Cocteau. Dava pausa, e escrevia meus sentimentos isentos de pensamento medido e organizado e retornava ao filme, e assim aconteceu a todo momento de sua escritura, feito uma roda-viva de emoções. Estou muito feliz por esta metamorfose que vem me abraçando de forma tenra e generosa, estendendo-me mão segura com imenso cuidado, acalmando meu espirito que sempre foi de natureza selvagem e arredia... Meu cérebro foi-me entregue ao nascer muito maior do que meu coração, e por isso mesmo os instintos sempre pulavam à frente de qualquer manifestação passional. Porém, ultimamente venho recebendo um afeto extremamente libertador, de modo que meu coração pequenino e imensamente delicado, enfim encontrou um outro também igual em leveza para dialogar e desenvolver-se. Compreendo a Vida dando-me novamente mais uma chance de reafirmar minha Natureza e seguir sendo eu mesma.]

*Este texto é dedicado a Pietro Milan e Bruno Colli, e a todos das equipes “Flux’s”.



Quem pensa em demasia não percebe a magia que há nas coisas, no mundo, ao seu redor... O pensamento age sob o efeito preciso da materialidade, quase como um narcótico poderoso impedindo de vermos a poesia existente na Vida; mas o sentimento e a intuição refletem tudo o que há por detrás das coisas, ou seja, revela sua essência. Aqui nesta película, “Orfeu” (Jean Marais) é um poeta incrédulo. Seus olhos revelam o que sua mente nega: atravessar um  espelho para integrar outra realidade (ou a verdadeira realidade das coisas que ele então, desconhecia existir?) Cocteau brinca a todo instante com os ‘reflexos’, seja de maneira obvia ou irônica, sempre coloca nesta releitura do mito grego de ‘Orfeu e Eurídice’ Sonho, Realidade, Delírio...

O que vivemos em termos de realidade ‘é’ realmente? O que somos dentro de nós é refletido para fora de nós? Se o é... como sabemos se somos exatamente o que refletimos aos olhos dos outros? E aos nossos olhos? O que queremos ver e ser? Vida ou Morte? Uma coisa é diferente da outra? O cineasta francês Jean Cocteau instiga o espectador mais atento a essas reflexões quando propõem o falecimento de um jovem poeta, o qual retorna à vida de forma escrava e subserviente nas mãos da ‘princesa’ (interpretada pela belíssima Maria Casares), ela personificando a ‘Morte’.

Eis que inicia o lirismo e beleza da releitura do mito grego, em “Orphée”  (1950) de Jean Cocteau. Estátuas gregas por todo o jardim da casa de “Orfeu”, quadros com imagens daquela civilização antiga e seus mitos dependurados discretamente dentro dos ambientes da casa, sugerem a fonte da estória. O Cinema deste cineasta francês precisamente é imagem pura em simbolismos discretos e suaves. Um preto & branco impecável! Sob a direção fotográfica de Nicolas Hayer. Cenas em escala de cinza e branco pincelado graciosamente ao redor dos negros... do inicio ao fim vemos o que há de mais casto da fotografia em movimento.

Uma brincadeira de faz de conta inerente ao universo teatral, sempre permeia o imaginário dos filmes de Jean Cocteau, aqui sobressai os efeitos de iluminação tipicamente dramáticos provenientes do palco. Os focos de luz como que relâmpagos de sentimentos expostos à flor da pele. Um rádio que não toca musicas, mas que profere poemas (ou mensagens cifradas do ‘Mundo Inferior’), a ‘Morte” bela e precisa, com seu semblante sereno, calculado e inóspito... uma beleza que todos desejam: a suposta paz de espirito não atormentada pelas ondas involuntárias do amor romântico... mas a duplicidade dos reflexos nos espelhos denunciam... [‘e aquela primeira noite a morte de Orfeu entrou no quarto dele e o observou dormir’].


De modo muito inteligente Cocteau ‘reprograma’ os locais, personagens e circunstancias do mito original, para reconstruir outra realidade, fluindo de maneira cinematograficamente coerente para esta narrativa da estória grega de ‘Orfeu e Eurídice’. Foi num bar chamado “As Bacantes” onde a tragédia iniciou-se... os mensageiros da Morte surgem como selvagens de motocicleta, em pleno anos 50.

O vestido da morte que muda de cor, insinuando suas emoções, é algo quase imperceptível, mas aparece lá como um faixo de luz severa onde, a priori, estaria apenas a frieza calculada. Sim, nos filmes de Cocteau, há poesia e frescor juvenil das paixões arrebatadoras até mesmo na “Morte” que se apaixona por Orfeu... [‘a cada noite a morte de Orfeu, voltava ao seu quarto’]. O amor cantado pelas estrofes visuais do cineasta francês como que namorando as estrofes do poema grego, num entrosamento espetacular de sentimentos entre uma arte e outra.

No final das contas, Cocteau também expõem o lado perverso de todo artista: o desejo maior de manter sobre si seu mundo particular repleto de egoísmo criativo... onde nada penetra o artífice quando obcecado pelo afã criativo. Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando este lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer... [‘vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida... e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro...’].

Um remoto preludio do filme Matrix, onde ‘Neo’ atravessa o espelho para ver a verdadeira Natureza das coisas... Outro repente de câmera deste filme dos anos 50 nos remete ao futuro ‘Enter The Void’, de Gaspar Noé, com a visão da câmera sendo o próprio reflexo de sua persona. Simplesmente a história do Cinema reconhecida por ela mesma, e remontada atemporalmente numa magia que se revela aos olhos apenas dos amantes da Sétima Arte, onde Jean Cocteau imprime de ponta a ponta com efeitos simples de ilusionismos alcançados através da montagem inteligente.

Arte em estado puro. Um cinema destilado. [‘A vida é uma longa morte... Esta é a terra de ninguém. Aqui estão as memórias dos homens e a ruina de sua descrença’]. Os filmes de Jean Cocteau são um eterno estado de sonho... uma realidade surreal (do artista) dialogando e interferindo no que achamos estarmos sóbrios (ou em estado de homens). [‘Não existe nada mais criador de hábito que o próprio habito (...) as palavras que você usa não têm significado, aqui. (...) Não pergunte nada. Continue andando...’]

Katiuscia de Sá
Em 17 de Fevereiro de 2014, às 00:02h.

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*E para quem deseja conhecer um pouco mais sobre Jean Cocteau, há uma excelente matéria no Moonflux, assinada por Pietro Milan: http://moonflux.com/artistadiretor-jean-cocteau/