[Meu
primeiro texto sobre minhas impressões acerca da Sétima Arte, inteiramente motivado
por sentimentos. Eu que sempre escrevo críticas sobre a alcunha canhestra da
Razão; apresento-lhes este, que foi vindo à medida (e simultaneamente) em que
eu assistia o filme de Cocteau. Dava pausa, e escrevia meus sentimentos isentos
de pensamento medido e organizado e retornava ao filme, e assim aconteceu a todo
momento de sua escritura, feito uma roda-viva de emoções. Estou muito feliz por
esta metamorfose que vem me abraçando de forma tenra e generosa, estendendo-me
mão segura com imenso cuidado, acalmando meu espirito que sempre foi de
natureza selvagem e arredia... Meu cérebro foi-me entregue ao nascer muito
maior do que meu coração, e por isso mesmo os instintos sempre pulavam à frente
de qualquer manifestação passional. Porém, ultimamente venho recebendo um afeto
extremamente libertador, de modo que meu coração pequenino e imensamente
delicado, enfim encontrou um outro também igual em leveza para dialogar e
desenvolver-se. Compreendo a Vida dando-me novamente mais uma chance de reafirmar
minha Natureza e seguir sendo eu mesma.]
*Este
texto é dedicado a Pietro Milan e Bruno Colli, e a todos das equipes “Flux’s”.
Quem pensa em demasia não percebe a magia que há nas coisas,
no mundo, ao seu redor... O pensamento age sob o efeito preciso da materialidade,
quase como um narcótico poderoso impedindo de vermos a poesia existente na
Vida; mas o sentimento e a intuição refletem tudo o que há por detrás das
coisas, ou seja, revela sua essência. Aqui nesta película, “Orfeu” (Jean
Marais) é um poeta incrédulo. Seus olhos revelam o que sua mente nega:
atravessar um espelho para integrar outra
realidade (ou a verdadeira realidade das coisas que ele então, desconhecia
existir?) Cocteau brinca a todo instante com os ‘reflexos’, seja de maneira
obvia ou irônica, sempre coloca nesta releitura do mito grego de ‘Orfeu e Eurídice’
Sonho, Realidade, Delírio...
O que vivemos em termos de realidade ‘é’ realmente? O que
somos dentro de nós é refletido para fora de nós? Se o é... como sabemos se
somos exatamente o que refletimos aos olhos dos outros? E aos nossos olhos? O
que queremos ver e ser? Vida ou Morte? Uma coisa é diferente da outra? O
cineasta francês Jean Cocteau instiga o espectador mais atento a essas
reflexões quando propõem o falecimento de um jovem poeta, o qual retorna à vida
de forma escrava e subserviente nas mãos da ‘princesa’ (interpretada pela
belíssima Maria Casares), ela personificando a ‘Morte’.
Eis que inicia o lirismo e beleza da releitura do mito grego,
em “Orphée” (1950) de Jean Cocteau. Estátuas
gregas por todo o jardim da casa de “Orfeu”, quadros com imagens daquela
civilização antiga e seus mitos dependurados discretamente dentro dos ambientes
da casa, sugerem a fonte da estória. O Cinema deste cineasta francês
precisamente é imagem pura em simbolismos discretos e suaves. Um preto & branco impecável! Sob a direção fotográfica de Nicolas Hayer. Cenas em escala
de cinza e branco pincelado graciosamente ao redor dos negros... do inicio ao
fim vemos o que há de mais casto da fotografia em movimento.
Uma brincadeira de faz de conta inerente ao universo teatral,
sempre permeia o imaginário dos filmes de Jean Cocteau, aqui sobressai os
efeitos de iluminação tipicamente dramáticos provenientes do palco. Os focos de
luz como que relâmpagos de sentimentos expostos à flor da pele. Um rádio que
não toca musicas, mas que profere poemas (ou mensagens cifradas do ‘Mundo Inferior’),
a ‘Morte” bela e precisa, com seu semblante sereno, calculado e inóspito... uma
beleza que todos desejam: a suposta paz de espirito não atormentada pelas ondas
involuntárias do amor romântico... mas a duplicidade dos reflexos nos espelhos
denunciam... [‘e aquela primeira noite a morte de Orfeu entrou no quarto dele e
o observou dormir’].
De modo muito inteligente Cocteau ‘reprograma’ os locais,
personagens e circunstancias do mito original, para reconstruir outra
realidade, fluindo de maneira cinematograficamente coerente para esta narrativa
da estória grega de ‘Orfeu e Eurídice’. Foi num bar chamado “As Bacantes” onde
a tragédia iniciou-se... os mensageiros da Morte surgem como selvagens de
motocicleta, em pleno anos 50.
O vestido da morte que muda de cor, insinuando suas emoções,
é algo quase imperceptível, mas aparece lá como um faixo de luz severa onde, a
priori, estaria apenas a frieza calculada. Sim, nos filmes de Cocteau, há
poesia e frescor juvenil das paixões arrebatadoras até mesmo na “Morte” que se
apaixona por Orfeu... [‘a cada noite a morte de Orfeu, voltava ao seu quarto’].
O amor cantado pelas estrofes visuais do cineasta francês como que namorando as
estrofes do poema grego, num entrosamento espetacular de sentimentos entre uma
arte e outra.
No final das contas, Cocteau também expõem o lado perverso de
todo artista: o desejo maior de manter sobre si seu mundo particular repleto de
egoísmo criativo... onde nada penetra o artífice quando obcecado pelo afã
criativo. Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François
Périer) quando este lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a
morrer... [‘vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das
quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida... e verá a morte
trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro...’].
Um remoto preludio do filme Matrix, onde ‘Neo’ atravessa o
espelho para ver a verdadeira Natureza das coisas... Outro repente de câmera deste
filme dos anos 50 nos remete ao futuro ‘Enter The Void’, de Gaspar Noé, com a
visão da câmera sendo o próprio reflexo de sua persona. Simplesmente a
história do Cinema reconhecida por ela mesma, e remontada atemporalmente
numa magia que se revela aos olhos apenas dos amantes da Sétima Arte, onde Jean
Cocteau imprime de ponta a ponta com efeitos simples de ilusionismos alcançados
através da montagem inteligente.
Arte em estado puro. Um cinema destilado. [‘A vida é uma
longa morte... Esta é a terra de ninguém. Aqui estão as memórias dos homens e a
ruina de sua descrença’]. Os filmes de Jean Cocteau são um eterno estado de
sonho... uma realidade surreal (do artista) dialogando e interferindo no que
achamos estarmos sóbrios (ou em estado de homens). [‘Não existe nada mais
criador de hábito que o próprio habito (...) as palavras que você usa não têm
significado, aqui. (...) Não pergunte nada. Continue andando...’]
Katiuscia de Sá
Em 17 de Fevereiro de 2014, às 00:02h.
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*E para quem deseja conhecer um pouco mais
sobre Jean Cocteau, há uma excelente matéria no Moonflux, assinada por Pietro
Milan: http://moonflux.com/artistadiretor-jean-cocteau/