domingo, 9 de março de 2014

NOSTALGHIA


A água permeando de ponta a ponta em horizontal, ora represada, ora aos pingos, ora em correntezas... indicativo de pureza, renovação, redenção ao passo acelerado no interior da estória. Uma casa com seu interior em ruinas, conotativo à transformação que ocorre nas personagens do poeta russo “Andrei Gorchakov” e de “Domenico”, o louco de Termas Vignoni. Ambos, aliteração do homem em ressureição pela força de confronto de seus próprios fantasmas – o medo da morte e de nunca mais poder resgatar suas memórias de infâncias, da terra natal, etc. Podemos inferir também o medo da perda da luz interior de si mesmo, pelo fato de não saberem mais quem são e porque estão no mundo.

A primeira personagem (o poeta russo) afogada em existencialismos, como se condensando em si toda uma civilização magoada e ainda sobre os efeitos da Guerra Fria, (e mais especificamente à própria sensação do cineasta Tarkovski, na época exilado na Itália após sair de sua terra Natal, a Rússia), cujos confrontos internos com uma nova cultura resumida na figura da atriz italiana “Eugenia” que  acompanha “Gorchakov”, cujos confrontos vão crescendo como o Bolero de Ravel – aos compassos retumbantes, entre ela e o poeta, revelam-se como uma fina costura entre o real e o imaginário – o sonho de “Eugenia” que elimina qualquer possibilidade de encontro entre o poeta e essa nova terra que o acolhe.

Eu mesmo passei por algo semelhante quando me ausentei da minha pátria durante algum tempo: meu encontro com um outro mundo e com uma outra cultura, e o princípio de uma ligação com eles provocaram uma irritação, quase imperceptível, mas incurável — algo como um amor não correspondido, um sintoma da impossibilidade de tentar apreender o que é ilimitado, ou de unir o que não pode ser unido; um indicador de quão limitada, quão restrita, deve ser a nossa experiência na terra; como um sinal das limitações que predeterminam a nossa vida, impostas não por circunstâncias exteriores (com as quais seria fácil lidar!) mas pelos nossos próprios "tabus" interiores... (TARKOVSKI, Andrei. “Esculpir o Tempo”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.243).

E como é de se esperar, o traço característico de Andrei Tarkovski, em misturar sonho e realidade, realidade e sobrenatural, sobrenatural e cinema é demonstrado através da força da Natureza que sempre domesticou o homem e o ajudou a evoluir pensando ingenuamente que era ele o dominador, quando na verdade quem dita as regras é a força da Natureza que precisa sempre ser domada para nos adequarmos aos nossos próprios ideais. Daí a travessia da piscina cujas “águas queimam” ser tão importante, sem que a chama se apague... quando o homem ‘vence’ a Natureza, ele deve morrer para juntar-se a ela. O poeta e o louco... qual a diferença? Enquanto um realiza o ritual, o outro também queima espontaneamente em igual beleza e força comunicativa.


 
“A visão se turva. Minha força... são dois dardos adamantinos ocultos. Confundem-se o que se ouve da casa paterna distante que respira. Os músculos duros e os gânglios enfraquecem... como um ruído de bois no pasto,... e quando a longa noite cai,... duas asas surgem atrás de mim. Na festa, a vela me consome. De madrugada, recolham minha cera derretida,... e nela leiam quem chora, e quem anda soberbo,... como dando a ultima porção de alegria,... morrer levitando e,... por sorte, acender-se... postumamente como uma palavra”. [NOSTALGHIA/1983, de Andrei Tarkovskij]

Como um cinema metafisico desde sua invenção, Tarkovski preocupa-se mais em sensações do que seguir um roteiro cadenciado por inicio/meio/fim. E nisso ele é mestre. Essa impressão mística dos fatos cotidianos é mostrada magnificamente pelas paisagens bucólicas do interior da Itália; pelo poder mágico das paredes de pedra de Termas Vignoni; pela neblina que encobre e revela o ser... tudo vagarosamente como um tempo sem tempo passando, e sim, inventado a bel vontade dos sentimentos, da nostalgia.


 
Desde o inicio, ao assistir ao filme, senti-me como quando criança que me perdia horas dentro de mim mesma absorvendo a realidade de forma puramente sensorial... conferindo a temperatura, as cores do dia, a velocidade do sol em revelar as sombras, no som das aves que se confundiam ao rasgar do vento que passa por nós... Está tudo lá; a magia do tempo capturado na película de Andrei Tarkovski em “Nostalghia”. Cinema desse quilate é impossível passar imune. Graças a Deus existe o poeta do audiovisual que ousa primeiro saborear-se a si mesmo para depois morder um pedaço do mundo com sua própria fome e vontade. Seus filmes autorais são essa fome que o cineasta teve ao longo da vida, enquanto diretor, traduzida em suas obras belíssimas e que nos fazem pensar de maneira outra a vida que nos escapa aos dedos.

É preciso que eu diga que quando vi pela primeira vez todo o material filmado, fiquei surpreso ao encontrar nele um espetáculo de absoluta melancolia. O material era inteiramente homogêneo, tanto no tom quanto no estado mental nele impresso. Não se tratava de uma coisa que eu houvesse decidido realizar; o que era sintomático e singular no fenômeno diante de mim era o fato de que, independentemente das minhas intenções teóricas específicas, a câmera obedeceu, sobretudo ao meu estado interior durante as filmagens... (TARKOVSKI, Andrei. “Esculpir o Tempo”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.244).

De “Nostalghia” ainda pode-se extrair a questão da crença em Deus... quando vemos a peregrinação de “Andrei Gorchakov” pelas igrejas observando os rituais santos – no filme, especificamente a de Ns.ª Sr.ª do Parto... é bastante forte para essa estória do homem que nasceu porém, se perdeu de suas origens. Sua fé naquele momento está posta à prova. Uma busca que nem ele próprio sabe explicar, mas é de alguém perdido à procura de sua própria luz – a da vela que precisa passar sob as águas sem se apagar ao longo da travessia, como uma espécie de provação. Muito bem colocado em ação (simbologia de o homem que passa pela vida e pelas agruras, com a difícil tarefa de jamais se deixar abater e perder-se de si mesmo).
 
Porém a figura do cachorro – que nas pinturas medievais era um simbolismo católico para a ideia da fidelidade de Deus para com seus filhos. O cão está sempre perto tanto do poeta quanto do louco, como que indicando que mesmo estando eles com sua fé abalada, Deus está ali presente, e não faltará no momento de maior iluminação e ascensão interior.




 
A questão da incomunicabilidade humana também é referenciada a todo momento em “Nostalghia”. A alma de alguém sendo desnudada através do cinema. Tristezas e delicadezas em um mesmo fio consumido nas chamas. “Nostalghia” é daqueles filmes que ficam escondidos em algum lugar em nós e permanece, misturando-se às nossas próprias lembranças.

É belíssimo!



Katiuscia de Sá
09 de Março de 2014, às 00:15h