Duas horas e vinte e quatro minutos é a duração do ‘filme’ escrito
e dirigido por Matthew Barney. Em principio, como já era de se esperar de um audiovisual
assinado por ele, as imagens contemplativas, serenas e lentas transferem ao
espectador um estado de relaxamento e meditação – isto é, para quem já está
acostumado e educado a apreciar filmes de arte cujo tempo e temporalidade não
estão nem aí para a velocidade pós-moderna.
“Drawing Restraint 9” (2005) requer paciência... muita
paciência e um pouco de compreensão dos rituais religiosos e sociais japoneses.
Mas não se engane – detrás das imagens tranquilas e lindamente enquadradas
mostrando todo um rito delicado e cotidiano que o povo nipônico detém em detalhes
sobre as mínimas atividades (como a cerimônia do chá), bem como detrás das
imagens bucólicas; da beleza natural; de paisagens amenas, esconde-se algo
insólito e severamente forte.
O coito entre os “noivos” (Matthew Barney e Björk, sua
esposa na vida real neste período) e o amor deles retratados de modo
comparativo a uma difícil metamorfose e superação de barreiras para os seres
mitológicos em ascensão, é traduzido por Barney de forma visceral (!) – as
cenas mais lindas e também mais perturbadoras de todo o filme. Elas vêm acompanhadas
de uma melodia tradicional japonesa extremamente dramática e expressiva, que
eleva a agonia do espectador em 100% mediante as imagens. Chega ao ponto de
massacrar a vista e embrulhar o estomago pelo coito dos noivos imersos de baixo
de um caudaloso rio de vaselina. Comem-se (no sentido lato da palavra),
simbolizando uma cumplicidade eterna dos amantes, e também o ritual de
preparação das carnes marinhas após o abate.
Tudo trágico e avassalador. O avesso dos gestos contidos e
delicados, retratados minuciosamente em todo o filme através do comportamento,
rigidez e disciplina dos orientais. Se no amor, os sentimentos escapam a todo
critério de ponderação, a cena do coito entre os noivos é algo realmente belo e
ao mesmo tempo (incrivelmente) assustador e sobrenatural, tal como as
manifestações mitológicas do povo japonês. “Drawing Restraint 9” de Matthew Barney
incorpora alguns aspectos icônicos e simbólicos desses mitos, apresentando uma
releitura visual dos mesmos. Saber sobre alguns deles pode facilitar na leitura
e compreensão da obra.
Em todo momento há a simbiose entre o passado lendário e o
presente tecnológico que faz girar a economia japonesa de exportação da pesca
industrial da carne de baleia. A lenda da criação do mundo (conforme o folclore
nipônico) acompanha o inconsciente de tudo o que acontece no “presente”
retratado neste audiovisual de Barney. Identifica-se “Amenonuhoko” – lança encantada cravejada
de joias do casal de deuses (os primeiros “Kami”, os principais) que criaram
as ilhas japonesas; as formas animísticas dos deuses válidas no Xintoísmo, revelada
mais tarde nos noivos durante seu primeiro coito, onde o ato em si os
transforma aos poucos até a aparição da real condição de seus corpos – são alguns
exemplos.
O elemento Água, (onde tudo começou conforme criação do mundo pela mitologia nipônica)
manipulada nas mãos dos “Kami” principais, através de suas lanças encantadas –
podemos identificar essa simbologia através da transformação liquida para
gelatinosa da enorme quantidade de vaselina armazenada no grande recipiente do
navio (que podemos inferir também à transformação emocional do “casal”, bem
como sua transformação física mais adiante); e também na cena das crianças
preparando pequenas porções de camarão com uma espécie de patê – essas crianças
facilmente podem ser identificadas como os filhos – pequenas divindades que
nasceram quando os dois “Kami” principais tiveram seu primeiro contato com as
águas terrestre – e também nos remete aos rituais de agradecimento pela boa
pesca.
Para Matthew Barney o que importa mesmo em sua obra de
audiovisual, é a utilização deste suporte artístico para valer-se como canal
expressivo, portanto, “Drawing Restraint 9” não é um filme filme, como
compreendemos ser os filmes (com roteiro, personagens, Mise-en-scène, etc.).
Barney é um artista plástico que usa os recursos do audiovisual para dar vida
ao componente artístico que ele quer configurar. “Drawing Restraint 9” é uma
obra de arte que faz parte de uma peça maior. Um projeto intitulado do mesmo
nome, porém, composto de 19 partes enumeradas em diferentes suportes (desenho,
escultura, música, instalações e vídeo-arte), que Matthew Barney idealizou
quando ainda era estudante na Universidade de Yale. Devido a isto, “Drawing
Restraint 9” é apenas uma manifestação artística dessa série. Barney utiliza o
suporte do audiovisual para convidar o espectador a ter uma experiência plástica
sensória profunda através das imagens em movimento que o audiovisual pode
proporcionar.
Hellen Katiuscia de Sá – 16/julho/2014.