quarta-feira, 16 de julho de 2014

Drawing Restraint 9


Duas horas e vinte e quatro minutos é a duração do ‘filme’ escrito e dirigido por Matthew Barney. Em principio, como já era de se esperar de um audiovisual assinado por ele, as imagens contemplativas, serenas e lentas transferem ao espectador um estado de relaxamento e meditação – isto é, para quem já está acostumado e educado a apreciar filmes de arte cujo tempo e temporalidade não estão nem aí para a velocidade pós-moderna.


“Drawing Restraint 9” (2005) requer paciência... muita paciência e um pouco de compreensão dos rituais religiosos e sociais japoneses. Mas não se engane – detrás das imagens tranquilas e lindamente enquadradas mostrando todo um rito delicado e cotidiano que o povo nipônico detém em detalhes sobre as mínimas atividades (como a cerimônia do chá), bem como detrás das imagens bucólicas; da beleza natural; de paisagens amenas, esconde-se algo insólito e severamente forte.


O coito entre os “noivos” (Matthew Barney e Björk, sua esposa na vida real neste período) e o amor deles retratados de modo comparativo a uma difícil metamorfose e superação de barreiras para os seres mitológicos em ascensão, é traduzido por Barney de forma visceral (!) – as cenas mais lindas e também mais perturbadoras de todo o filme. Elas vêm acompanhadas de uma melodia tradicional japonesa extremamente dramática e expressiva, que eleva a agonia do espectador em 100% mediante as imagens. Chega ao ponto de massacrar a vista e embrulhar o estomago pelo coito dos noivos imersos de baixo de um caudaloso rio de vaselina. Comem-se (no sentido lato da palavra), simbolizando uma cumplicidade eterna dos amantes, e também o ritual de preparação das carnes marinhas após o abate.


Tudo trágico e avassalador. O avesso dos gestos contidos e delicados, retratados minuciosamente em todo o filme através do comportamento, rigidez e disciplina dos orientais. Se no amor, os sentimentos escapam a todo critério de ponderação, a cena do coito entre os noivos é algo realmente belo e ao mesmo tempo (incrivelmente) assustador e sobrenatural, tal como as manifestações mitológicas do povo japonês. “Drawing Restraint 9” de Matthew Barney incorpora alguns aspectos icônicos e simbólicos desses mitos, apresentando uma releitura visual dos mesmos. Saber sobre alguns deles pode facilitar na leitura e compreensão da obra.


Em todo momento há a simbiose entre o passado lendário e o presente tecnológico que faz girar a economia japonesa de exportação da pesca industrial da carne de baleia. A lenda da criação do mundo (conforme o folclore nipônico) acompanha o inconsciente de tudo o que acontece no “presente” retratado neste audiovisual de Barney. Identifica-se “Amenonuhoko” – lança encantada cravejada de joias do casal de deuses (os primeiros “Kami”, os principais) que criaram as ilhas japonesas; as formas animísticas dos deuses válidas no Xintoísmo, revelada mais tarde nos noivos durante seu primeiro coito, onde o ato em si os transforma aos poucos até a aparição da real condição de seus corpos – são alguns exemplos.


O elemento Água, (onde tudo começou conforme  criação do mundo pela mitologia nipônica) manipulada nas mãos dos “Kami” principais, através de suas lanças encantadas – podemos identificar essa simbologia através da transformação liquida para gelatinosa da enorme quantidade de vaselina armazenada no grande recipiente do navio (que podemos inferir também à transformação emocional do “casal”, bem como sua transformação física mais adiante); e também na cena das crianças preparando pequenas porções de camarão com uma espécie de patê – essas crianças facilmente podem ser identificadas como os filhos – pequenas divindades que nasceram quando os dois “Kami” principais tiveram seu primeiro contato com as águas terrestre – e também nos remete aos rituais de agradecimento pela boa pesca.


Para Matthew Barney o que importa mesmo em sua obra de audiovisual, é a utilização deste suporte artístico para valer-se como canal expressivo, portanto, “Drawing Restraint 9” não é um filme filme, como compreendemos ser os filmes (com roteiro, personagens, Mise-en-scène, etc.). Barney é um artista plástico que usa os recursos do audiovisual para dar vida ao componente artístico que ele quer configurar. “Drawing Restraint 9” é uma obra de arte que faz parte de uma peça maior. Um projeto intitulado do mesmo nome, porém, composto de 19 partes enumeradas em diferentes suportes (desenho, escultura, música, instalações e vídeo-arte), que Matthew Barney idealizou quando ainda era estudante na Universidade de Yale. Devido a isto, “Drawing Restraint 9” é apenas uma manifestação artística dessa série. Barney utiliza o suporte do audiovisual para convidar o espectador a ter uma experiência plástica sensória profunda através das imagens em movimento que o audiovisual pode proporcionar.



Hellen Katiuscia de Sá –  16/julho/2014.

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